Bem-vindos à nova dimensão... seqüenciador de sonhos online.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Três ao cubo *do matemático*

- O quê você acha?

Ela observava atenta, mas com aquele ar distante que sabia que o deixava apreensivo. Parecia não ter ouvido a pergunta e por um m0mento ajeitava os cabelos, como se deixá-los cobrir os ombros não fosse artimanha de sedução. Mas continuava olhando, sem nada responder.

- Eu acho que ficou legal… bem a sua cara, mesmo.

Os olhos sagazes encontravam os dele com o firme tom de “e como é a minha cara”. ao que o rapaz por um momento quase se acanhou, mas em seguida firmou os pés como quem permaneceria resoluto, em sua posição. Ela riu, talvez da empáfia.

- Sei lá, tava a fim de demonstrar isso, de fazer algo e… – calou-se, ao que o dedo dela lhe tocou os lábios.

- Cala a boca e me beija?

E ali, no silêncio da apreciação, houve o primeiro beijo. O universo explodia, antes de começar a se expandir.

 
Fractal, de ~ZeonFlux no deviantART.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Culpa de quê? *berram os prisioneiros*

Culpa do crime,
culpa do ato,
culpa do erro,
culpa do fato.

Culpa da gula,
culpa da fome,
culpa da infâmia,
culpa da morte.

Culpa da falha,
culpa do engodo,
culpa do roubo,
culpa do engano.

Culpa até da culpa,
culpa da inveja,
culpa da vida,
culpa até da alegria.

Culpa de ser,
culpa de estar,
culpa de poder,
culpa de parar.

Crime, ato, erro, fato…
Gula, fome, infâmia, morte…
Falha, engodo, roubo, engano….
Culpa e inveja. Vida e alegria.

Ser, estar… poder parar.

E eu que só queria comer um bolinho.

"Alô, Troll? Aqui é a sua criança interior. Eu fugi e acabo de assaltar uma loja de bebidas!" *sirenes* "Opa, preciso ir!"

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Aniversário *sem velas acesas*

- Taí... um ano e nem parece. Dá pra voarem mais 10 desses, por nós. – Ele falava em um tom quase de nostalgia, com aquele jeito agradável de manhã fria. – O resto a gente curte, leva, reacende... melhora. Sempre melhora.

- Do quê você está falando, hein? – Ela trazia a impaciência de quem aguardava o próximo movimento, na voz. – Parece que às vezes você se perde em alguma coisa e sai daqui.

Ele apenas sorria de volta, com o jeito calmo que lhe era incomum. – Não se lembra? Ou não quer lembrar? – A alfinetada vinha bem do jeito que ela esperaria, dele. Continuava muito calmo, apesar de tudo. Era perturbador, por si só. – Tô demorando, não é?

- A gente um dia vai cronometrar. Aí já era pra você. – O deboche era típico, enquanto observavam o imenso tabuleiro abaixo deles. Éter criara a luz para que seus irmãos percorressem aquelas linhas em seus impulsos de criação. Érebo e Nix delineavam cada curva do mundo. Tudo aquilo que surgira do Caos, em uma harmonia estranha, em partes dissonante.

- O que acha? – Cronos percorria o mundo novo com jeito quase de criança, sem saber que jamais o seria novamente, e ela observava-o, quase ignorando as peças que Uranos movia. – Vamos, então. Depois sou eu que me demoro.

Ela observava e ria. – Jura? – E de um movimento, tomava-lhe a Rainha. – É apenas justo, não?

- O que quer que eu diga? – Observava o tabuleiro, incrédulo.

- Você me diz feliz aniversário. E eu… – Abria seu sorriso mais sacana. – … te digo xeque-mate.


Gaia, de ‘CrisVector no deviantART.

------------------------------

Pq hoje faz um ano de algo muito especial e nada datado. Nem com hora ou dia pra acabar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Expectativas – Prólogo *páginas de um diário*

A paisagem era estranha. Aquela trilha tão larga, ladeada e recoberta de pedras que soavam às paredes do monte escavado cada batida de seus cajados, no chão. O ar úmido, quente, que lhes grudava as vestes na pele e parecia fazer pesar mais o final da longa jornada. O rapaz mais jovem, à frente, seguia com ar de certa resolução ao rosto. Os dedos calejados tentavam ajeitar uma mecha encaracolada para fora da testa, mas podia sentir os cabelos gotejando pelas laterais do rosto. Por um momento, lembrava-se das lições de sua infância.

- Parece o inferno… – Comentava, olhando por sobre o ombro para seu ajudante, um homem já um pouco mais velho, de pele clara e com as primeiras marcas da idade surgindo aos cantos dos olhos.

- O Hades em nada se assemelharia a isso, Lecrino. – A voz era grave e austera, como sempre, mesmo com a respiração entrecortada pelo esforço daquela última subida. – E mesmo que fôssemos descer até lá, eu não teria dispensado o carro de boi que seu pai nos ofereceu.

- Hahahahahahahahahaha! Não seja tolo, homem. Nossos bois fazem bem mais por todos nós onde estão, em seus pastos e nos arados. E tivemos carona por mais da metade do caminho, afinal. – Ele voltava a apertar o passo, agora que tinham chegado ao final da última ladeira. Podia sentir o calor aumentar, só de observar o castelo pela primeira vez.

O entardecer espalhava seu alaranjado pelo vapor das altas torres da imensa construção. As muralhas de pedra e ferro se projetavam em tonalidades variadas, pontuadas a cada 200 metros por algum artefato de guerra que Lecrino esforçava-se para lembrar-lhes os nomes, às vezes em vão. Notava cada um deles como grandes bestas debruçadas por cima das balaustradas, como se prestes a saltar, garras afiadas, na direção de qualquer força opositora que se aproximasse.

- Nossa… – Ele não conseguia evitar a pausa na marcha, ao que se dava conta de finalmente estar ali. Ao longo dos anos, deixara a fazenda da família para conhecer pequenas cidades mercantes, portos, mas não aquilo. Nem mesmo a visita à Capital Leste, Kayern, com suas impressionantes máquinas a vapor, o havia preparado para aquilo.

- O carvão das minas sob as colinas, ao pé das montanhas gêmeas, ergueu tudo isso. Longa vida ao Rei. – Erimath, o ajudante, deixava escapar, com certo tom de ironia. Não suportava a coroa, muito menos seus nobres. Fôra versado em todos os protocolos da côrte, para honrar a tradição de gerações servindo à alta nobreza. No entanto, estava ali ao lado de um filho de
fazendeiro, como seu pupilo. E orgulhava-se mais disso do que das “conquistas” de seus antepassados.

- Não seja turrão, meu bom homem. Nossos ancestrais teriam orgulho de ver-nos ingressando o Palácio pela porta da frente. E é o que pretendo fazer. – A ansiedade transparecia à voz do jovem. Uma das mãos apoiada ao cajado enquanto a outra percorria as vestes até a pequena gaiola de metal que pendia de sua mochila.

Tinha certeza de que o Rei quereria vê-los, os três.

------------------------------------------------

Aproveito o post, ainda, para agradecer por mais uma condecoração dada a este Palácio, dessa vez pela amiga Tyr:

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Chimeras em papel *e algo mais*

Era noite. O cheiro do salão era um misto de suor, medo e tensão. Todos se entreolhavam e percorriam as bainhas de suas armas com os dedos quase trêmulos, sentindo o couro frio, sem oferecer qualquer conforto. Suas lâminas ainda guardadas, para que o brilho não lhes entregasse a cobertura, naquelas sombras. Em alguns, a expressão apenas de medo. Em outros, um tipo de ansiedade quase suicida. Os que queriam que acabasse logo.

O primeiro sinal lhes roubava o fôlego e aumentava o silêncio quase opressor. Estava chegando. Tanto terror antes e em nada se comparava ao frio que agora lhes tomava os ossos, ameaçando congelar cada um daqueles guerreiros bem onde estava. Um som gutural, um rosnado baixo, anunciando que a besta aproximava-se. Em poucos instantes, naquela imensa nave, faltaria ar não apenas pelo respirar arfado de cada um… só agora percebiam o real tamanho do que haviam decidido enfrentar.

Os olhos dourados emitiam o brilho agourento do entardecer. Todos aqueles bravos desembainhavam suas armas e disparavam em carreira furiosa, como se em direção à glória ou à própria morte. Em cada grito, o desespero de ir lutar contra algo maior que a vida. E nenhum daqueles que mergulhou nas presas do desafio deu qualquer segundo de atenção às próprias costas… ou ao não-tão-bravo que fugira.

Ficaram os que não esmaeceriam, pena em punho. E, cada um com sua folha, começaram a escrever. Sua missão: matar a fera em duas horas.

------------------------------------------------

Atenção, senhoras e senhores, e perdoai a mim, o tolo, a quebra ligeira do protocolo. Ouvi e atentai ao que o nada ilustre bufão vos traz. Pois justiça alguma haveria não decidisse o Rei, em revelia, vir honrar ao próprio olhar.

Pois ouçam, súditos e visitantes, e saibam de outros reinos que os olhos do Troll agradam. Há sempre o que ler, o que descobrir, o que revelar. E por mais que a todos homenagear seja impossível, vem este selo indicar quem o Rei ache (e aqui, perdoai a rima tosca) imperdível.


Alice Lupin
Caldeirão da Bruxa
Casa da Sisa
Devaneios de um qualquer
Inspirar-Poesia
Macaires

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Dois abstratos *em suspiros de prazer*

Pegou a palheta e encheu-a de tinta e poesia. Brincou um pouco com os pêlos do pincel pela própria pele, meio que dançando ali, à frente da tela em branco. Respirava fundo, suspiros de criadora e de deusa, os olhos fechados. Por sobre as pernas nuas, o macio toque daquela pluma, repleta de possibilidades, subindo-lhe às curvas com o seu jeito travesso.

Não dava pra saber como o tempo passava, em cada nova pincelada. Traços de cor e vida percorrendo o painel alvo. Um desenho que demoraria a se revelar, porque era assim que ela era. Aos olhos, mil paisagens tentando se insinuar por aquele espaço. Usava muito verde, como seus olhos que por vezes esgueiravam-se por olhares de canto, com jeito de ninfa. De poucas cores, misturava cada tonalidade exatamente como queria.

Por vezes dava espaço aos azuis, como do fino tecido que cobria-lhe a pele, quase transparente. Esvoaçavam como a tinta fingia fazer, pela tela. Parecia perdida, ou perdia-se, inebriada em tantas imagens que ninguém mais poderia compreender. Soltara-se, toda, tronco, braços, tecido, madeira e cabelos, e assim por vezes rodopiava, como se atingida por uma lufada de vento mais forte, que adentrava-lhe a janela. Cada vez que mergulhava o pincel no balde d’água, ria solto, suave, bela.

Passou por tantos marrons e castanhos, que pareciam deslizar para a imagem direto de seus cabelos, ficando mais claros como sua pele. Deu pequenos toques de realce, da cor e delicadeza de seus mamilos, em meio a suspiros que eram mescla de prazer e melancolia. Buscava o ar como se para conter-se, apenas um pouco, e entreabria seus lábios perigosos de sereia.


Water nymph, de ~BloodSorceress no deviantART.

- Vermelho… – a voz soava como nada que se pudesse ter ouvido antes e trazia toda sorte de arrepios, dos mais temerosos aos mais lascivos. O pincel mergulhava na água, solitário, e ela fitava a tela longamente. Novas tintas na palheta, enquanto seus dedos, tão delicados, percorriam a madeira, criando tonalidades de tão fortes, perigosas.

A mão manchada daquele sangue não tinha pena da tela nem de suas belas cores. Agredia a paisagem surreal com suas curvas de insinuante abstração. A respiração cada vez mais intensa, enquanto rasgava aquela imagem até achar-lhe a carne. Explodia em movimentos, quase revolta, como se prestes a rugir para a tela. Arfando no que jamais pareceria, embora fosse, seus últimos retoques.

Parou. Respirou. Recedeu… e só então olhou-me de frente. Suspirava de prazer e satisfação, enquanto se virava para mim, tão suja de tinta, manchando os cabelos daquele rubro, enquanto os ajeitava para longe dos olhos. Veio dando cada passo daquele jeito rebolado, quase felina, e riu.

– Se eu não me sujo, não vale a pena... o quê achou? - E eu, sentado e tolo, tentava ver-me naquele retrato. Ela deve ter percebido a minha confusão. – Bobo. – E veio até mim, em tantas cores, repleta de possiblidades…

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Serenata de sombras *bailam pirilampos*

Sentia o lugar à sua volta, abrindo um sorriso discreto. De longe seria um idoso, apesar do cajado de cedro que trazia em uma mão. As brancas areias, sob o céu nublado, não queimavam-lhe os pés, mas ainda o aqueciam, em seu estranho abraço por entre os dedos. O vento, úmido, por vezes fustigava a pele com finos grãos daquele solo que conseguiam caminho pelo meio das vestes. O longo robe balançava a cada rajada mais forte, mas aqueles grãos não eram incômodo. Pensava neles como carícias.

Por isso tudo, sorria. Pela sensação que só ali tinha, de que a terra tentava tragá-lo, para a segurança de que só os sepultos partilham. Ao menos alguma opção de descanso lhe era dada, ainda que jamais fosse aceitá-la, sem algum excelente motivo.

A mão apertava-se mais firmemente ao redor da madeira, com aquela mudança da brisa. Os olhos aguçavam-se e percorriam a paisagem, em busca da presença que sentia. De uma lufada mais desafiadora, o capuz era jogado para trás, revelando os cabelos quase brancos de tão loiros, do jovem rapaz. O sorriso mudava de tom e ele abaixava-se lentamente, tomando um punhado daquele lugar, com a mão. Deixava alguns grãos escorrerem pelos dedos e atentava à forma como caíam ao chão, em espirais.

- Mostra-te…

Apenas o bater das ondas respondia, ao longe. Um ritmo que ia aumentando, do espumar contra as pedras. Pareceria peripécia do vento, mas ele estava certo de que ouvia respostas, no arrastar do mar por sobre a areia. Aquele som de folhas de papel deslizando, umas por sobre as outras. E nele, por vezes o de algumas que rasgavam.

- MOSTRA-TE!

Uma onda quebrava tão forte que mesmo àquela distância ele sentia o salpicar da água gélida, ao rosto. O ar assobiava, como se quisesse arrancar-lhe o robe, e a ponta do cajado já desenhava trilhas incandecentes pela areia. Verdes, brilhantes, como os olhos do feiticeiro se iam tornando, pouco a pouco.

Era imenso, o dragão-mundo, com aquelas escamas que reluziam e refletiam sobre ele a luz de um sol que não estava ao céu. Aquele ser gigantesco fulgorava, erguendo-se do mar frio na ameaça de arrastá-lo para o fundo. Era tão velho quanto imponente, como quem o desafiava teria de se tornar.

Mas o bruxo tomara, ali, uma decisão. Seria grande, fulgoraria… até ficaria velho. Mas nunca seria sua, aquela presença tão fria. Segurou firme o cajado nas duas mãos e de toda magia que lhe fora dada, fez surgir todo calor que poderia.

Já era invencível… mas agora lutaria para ainda ser ele mesmo.


Six Senses, de Kirsi Salonen.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Bem-vindos à nova dimensão… *soa a Voz*

Bem-vindos. Vocês adentram as vistas craniais da psicogênese. Este é o lugar fora de tempo e espaço. Não temam, pois sou apenas a manifestação vocal de seus sonhos eternos. Sou como a água, o ar, o próprio fôlego. Não temam.”

E foi após estas palavras que o Rei deste Palácio teve seu primeiro contato com a obra do holandês Arjen Lucassen. As linhas são o começo de uma saga fantástica do projeto Ayreon, narrada em dois CDs: Adentrando o Castelo Elétrico. Soa-lhes familiar?

Em sua coletividade, todas as ‘Óperas Rock’ do grupo Ayreon narram a evolução humana como vista por uma série de terceiras-pessoas: desde o último homem, sozinho, em uma colônia marciana, revivendo o passado através do “Seqüenciador de Sonhos”, até tantas menções a uma raça alienígena que teria povoado a Terra para estudar algo muito valioso que um dia perdeu – sentimentos.

Com o fechamento de um ciclo iniciado com A Experiência Final, indo até os discos A Equação Humana e 01011001 (tão bons quanto a Jornada), Arjen despediu-se de Ayreon para dar vida a um novo projeto: Guilt Machine. Não consigo parar de ouvir, desde quinta-feira. Então essa manhã me senti na vontade de fazer justiça ao verdadeiro criador, que abriu aos olhos do Rei Troll os portais nucleares do Palácio Elétrico.

A trilha sonora, aliás, abre com Guilt Machine e segue com Ayreon. Espero que gostem, como sempre.

Album artwork e letras: Green and Cream”, in On This Perfect Day – Guilt Machine

 

 

Por último, venho avisar que agora estou também postando junto à sempre deliciosa Poisongirl, no blog Prolixia. Boa leitura e nos vemos – também – por lá.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Golem no divã *via receituário*

Acordava aflito, com a mão sobre o peito, fingindo que tinha algo a agarrar, ali. Reflexo involuntário de quem teve coração, algum dia. Os dedos de frio metal deslizando, arranhando o próprio peito de pedra. Era Pedro, por causa disso. Se tinha outro nome antes, não se lembrava mais. Se tinha sonhado algo pavoroso, para acordar tão bruscamente, também não sabia. Mas provavelmente não. No sentido que provavelmente um computador não sonha com seus arquivos, durante sua defragmentação.

Erguia-se, gigante, grande demais para lembrar como era se levantar sobre pernas. O que quer que o sustentava, em nada lembravam os músculos de outrora. E aqueles certamente não rangiam tanto a cada passo. A quem via e ouvia, talvez parecesse uma dificuldade enorme, mas não era. Simplesmente ainda se lembrava como caminhar e o fazia quase naturalmente. Pequenos pedaços, placas, porcas e parafusos que ia perdendo pelo caminho, caíam só porque não eram mais importantes. Mas não o deixavam mais leve.

Naquele dia, trilhava um caminho antigo. Sem motivo aparente, estava ali. O que já fôra terra, mato e os sons de pássaros substituído por concreto, pedra, ferro, frio… como ele. Mas algo faíscou, súbito, por trás de seus olhos de fibra e vidro. Talvez algum elástico ou correia arrebentara, porque aquilo era um impulso. Os estrondos de uma corrida desabalada ameaçavam rachar cada janela, cada vitrine, cada tela. Ele tinha pressa, sem saber porque. E correndo como desaprendera a fazer, ia se despedaçando. Não sentia aquilo, não percebia cada circuito e placa que queimavam, dentro de si. Os pedaços daqueles dedos que iam ficando, fincados e presos ao chão, enquanto arrancava pedaços imensos do concreto e asfalto, ao fim daquela trilha.

Era uma tarde de domingo, sobre a grama, quando das lágrimas erodiu-se a terra e surgiu aquele buraco que ele agora perdia tudo o que restava, para cavar. Sem motivo nem lembrança alguma, exceto da grama… a última faísca estourava de seu corpo num rangido agudo e tudo cessava. Mais alguns centímetros apenas… uma distância grande demais para continuar cavando.

Não morreu, porque não podia morrer. Mas desligou-se, em pedaços… sem alcançar o próprio coração.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Ânima *pulsando até os sonhos*

Sem eira nem beira…

Assim sentia-se, pois assim sempre fôra, realmente. Corria feito criança, mergulhava em sonhos de grama, lama, mato e barro e limo. Não se perdia em lugar algum, pois tudo era quintal no mundo atrás da casa, do prédio, da vida. Ah, sim, ele trazia muita vida atrás.

A eira, que não via da beira, pouco importava. Só impulso tomava e à lâmina deslizava. Debatendo braços e pernas, nadava. Nenhuma preocupação, fosse as pedras à frente, fosse a perda do calção. Simplesmente era, cheio de sorrisos raros e inocência sincera, das que doem quando se abre a boca.

Não haviam saltos. Ele se jogava no chão e errava, pra voar. Simplesmente se destraía demais, pra ver-se ir de encontro a algo tão sólido.

Era grandioso… e é, na verdade. Mas assim, diminuto, aproveita melhor o espaço que resta, então não faz questão de ser grande, pra poder descobrir cada fresta, rindo besta. Espera… mas não espera parado porque no fundo acha chato.

Não era nada e é tudo, ainda que por vezes mudo. Ainda que pareça supérfluo. Se alimenta de tolices, porque são doces.

Espera… mas não muito, porque desperta quando quer.

É criança, é besteira, é bufão… me rasga o peito.

I´m wearing my heart, like a clown.

  
+Howl and Calcifer+, de ~Orenji-kun no deviantART.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Margem mínima… *arranhado na parede*

E aí?

Que eu já andei me perdendo por tudo e querendo nada?
Que eu já achei que decifrava o mundo só fazendo piada?
Que eu já fui grandioso e surdo. Rico, mas não via nada?

E aí?

Que se deixar perder parecia difícil, mas foi inevitável?
Que aprender a amar seria só isso, brincar eu de ser tolo?
Que toda forma de posse é fútil e crer nisso parece  insano?

E aí?

Que nesse mundo é tudo ilusão?
Que querer tudo é só pretensão?
Que toda retórica quer conclusão?

E daí?


scream, de ~vidi no deviantART.

sábado, 11 de julho de 2009

Saldo. *no extrato da vida*

Só sei quem sou por todos os pedaços que deixei pra trás. Quem fui, quem me foi e quem deixei de ser, no tempo. Sou esse sabor das ondas, percorrendo minhas próprias células perdidas, cada grão de areia, sob a pretensão de cobrir o continente.

Desisti, portanto, de me entender. Percebi que no instante seguinte eu já terei mudado, então de que vale? Não é uma resignação, mas uma epifania. Sou cada um desses átomos inquietos que ousam se transformar nestas palavras. Essa ilusão na sua tela.

Essa manhã jogava xadrez com o tempo e ele ganhou. Foi a primeira vez em muito. E assim, feito criança birrenta, ele finalmente aceitou fazer as pazes... Pra em seguida roubar meu rei do tabuleiro e sair correndo, gritando que tinha ganhado. E sorri... Porque eu faria o mesmo. Nunca cresci, realmente.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Devorar… *suspiros de prazer*

 

 

Mergulhando insano…
eu na sede do teu calor.
Boca, fome do teu suor.
Entregue ao anseio.


Sou pele na sua pele,
lábios nos suspiros,
dedos em seu corpo.
Tesão em transe.

 

 

 

Desire, de *AbidingDaRules no deviantART.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Post mortem… *conta o espírito à balsa*

- A gente tá morto, lembra?

Era realmente estúpido reclamar do frio… mas que ele sentia, sentia. A caminhada de pés descalços pelos longos corredores de pedra daquele desfiladeiro era muito pior do q parecia, no começo. Luiz sentia que não fazia muita diferença, carne ou espírito. Os pés doíam igual, a caminhada cansava… só não sabia mais precisar a passagem do tempo, mas isso ele até achava bom.

- Saudade, sabe? Nunca imaginei que dava pra sentir saudade dos sapatos, caminhando… mas qualquer sola, confortável ou não, seria melhor que descalço assim.

- Sabe… morrer podia ser uma experiência diferente, mas até aqui você tá do meu lado… e parece que morto, ficou mais chato. – A voz dela trazia aquele jeito ferino. Reclamava, mas ainda era ela também a mesma pessoa de antes.

Os dois não lembravam de muita coisa, mas tocando o próprio corpo sentiam exatamente onde o sangue teria escorrido. Lanhos à pele, buracos aqui e ali. De vez em quando ele cedia a um impulso mais masoquista e deixava os dedos explorarem a ferida mais profunda de todas, indo descobrir o próprio coração, perfurado e inerte. Suspiraria exasperado, a cada uma dessas vezes, mas não fazia sentido suspirar quando ele sequer respirava.

- Eu acho… que eu tava dirigindo. – A essas palavras, os dois pararam e ela olhou-o de um jeito ambíguo. – Amor… acho que eu bati com o carro. – Ele falava em um tom de confissão e culpa. – Desculpa…

- Não precisa pedir desculpas, então… – E abriu seu sorriso mais sacana – Acho que agora saquei uma coisa e sei porque você bateu. A culpa foi minha…. não era você quem dizia que eu ainda morreria pela boca? – E falando isso, começou a rir e apontou para as calças dele.

- Nossa, eu nem tinha notado a braguilha aberta. Quem diria… rigor mortis. – E começou a rir, junto a ela.

- Eu nunca resisti a você de terno, mesmo.

 The Raiorin Chasm, de *TheEchoDragon no deviantART.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Casulo *pendurado sobre as chamas*

Já fui criança. Corria o mundo como se nada pudesse me alcançar e saltava alturas como se os braços abertos me ajudassem a voar. Foi assim que conheci o ardido do mertiolate e o vermelho do mercúrio cromo. Foi assim que conheci a prisão do gesso, em suas diversas formas, mas também descobri que meu corpo podia se cuidar, com a ajuda certa. E assim, já tive a impressão de que era invencível.

Já fui adolescente. Enfrentava o mundo como se nada pudesse me satisfazer e percorria as sombras como quem cumpre alguma grande missão. Fui o protagonista de mil dramas e centenas de aventuras, desejando um dia que fosse eu naqueles holofotes do cinema. Ia perdendo as certezas e ganhando cada pedaço de chão, onde deixar cair os cacos de uma dúzia de corações partidos. Com papel e caneta, montava mosaicos deles e achava tamanha estupidez linda e sublime. E assim, já tive a certeza de ser mártir.

Já fui perdido. Me desfiz de pedaços errados e encaixei o que dava no lugar. Me esfacelei, reconstruí, melhorei e aprendi. Já odiei espelhos e ganhei sei lá quantos sete anos de azar. De vez em quando, escorregava pela vida só pra maré levar. Nadei pra morrer em muita praia, mas sempre em alguma nova ilha. Quem estava lá, não sei. Em algumas se tinha quem, não encontrei. E ali, tive a angústia de estar só.

Já fui número. Maior quê, menor quê, igual, diferente. Derivei de mim mesmo em equações de incontáveis graus. Fui meu próprio majorante para porcentagens absurdas de sei lá quantos exercícios. Não encontrei botões o suficiente em calculadora alguma, pra ajudar a me calcular, então fiquei com uma de camelô, que apertando soava “pi”, só porque era menorzinha e cabia no bolso. E então, tive a audácia de ser ímpar.

Entre todos os meus heróis, tenho certeza que fui muito melhor como um vilão. Aprendi com meus vôos a queda, com meus delírios, algo perto da sanidade. Nunca descobri, no entanto, o que é ser grande nem se isso me traria qualquer significado. De tantos tombos, levantei-me alguns centímetros mais alto e só. Quando parei pra perguntar, me falaram que crescer era caber numa caixa menor do q eu era. Perder pedaços, pra poder entrar ali e ficar daquela mesma altura. E assim, já tive medo de ser eu.

E se algum dia tive tempo, só sei que hoje tenho pressa. Correndo pra tentar saltar e ser eu, de novo.

 Faery Chrysalis, de =Alterren no deviantART.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Convite *clama o bufão*

[clique no convite para ver a imagem no tamanho original]

Frodo_Fiat_Web

“Não seriam anjos e demônios peões de mesmo valor, separados apenas pelo lado do tabuleiro?”

Capa-Frodo_frente_Web

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Correndo sobre… *nos suspiros dos amantes*

 

Daqueles cabelos, de seu vermelho.
Percorrera-lhe a nuca com as pontas dos dedos.
Descobrindo as costas, a suave pele.
Correndo toques, sensações…

sou seus arrepios.

 

His Touch, de ~pixiedash no deviantART.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Sussurros *à luz fraca da janela*

As sombras confabulavam como se à távola, tempos e tempos atrás. Naquela noite, houveram decidido reunir-se para discutir o destino dele… estavam agitadas. Os sussurros vazavam-lhe ao sono, invadindo seus sonhos.

- Mas digo-vos, porque isso vi. Ela deixará de novo e ele sente. Repetir-se-á tudo uma terceira vez…
- Nenhum de nós tem certeza. Deixe de tolices… faria-lhe bem abandonar o passado vez por todas. E o está fazendo, não vê?
- Mas e se algo acontecer e ele se sentir culpado? Não acha q deveríamos ao menos avisá-lo?
- Fala como se ele já não tivesse notado. É o Arauto, lembra? A essa altura, ele já percebeu… mesmo que à força.

A luz do abajur acendia de súbito e todas se calavam, para segundos depois desaparecerem à luz mais forte da tela do notebook, que uma mão preguiçosamente abria, ao lado da cama.

- … vozes cretinas… me deixem dormir….
- O que foi, amor? De novo? – Ela despertava de um jeito lânguido, os dedos buscando-lhe o rosto e acariciando o cavanhaque, mais por instinto do que de ato pensado.
- Não me fala pra buscar terapia… ok? – Ele virava pro outro lado, puxando o travesseiro.
- Quem você acha que sejam? – Ela meio que se debruçava sobre ele, com jeito de curiosa.
- Não tem isso de ser essa ou aquela pessoa… ninguém é um só, nesse estado.
- Então a gente um dia se despedaça?
– Aquela pergunta fazia ele rir baixinho e isso atiçava-lhe a curiosidade.
- Não é isso… é que… não é sólido, entendeu? É energia…
- E energia fala? –
Ela agora soava incrédula.
- Não... não é falar… mas certos tipos de sistemas que se formam dessa energia, especificamente, adquirem consciência.
- Iiiiiih… tá ficando complicado. Sistemas?
- Sim, ordenações… “aglomerados” que de vez em quando vão além disso.
- E é isso que você ouve?
– Ela se ajeitava na cama, sentindo o sono daquele assunto.
- Sinto, mais do que ouço. – Ele bocejava.
- Então instala um vírus nesse sistema e vamos dormir, vai.
- ……… boa noite, amor.
- Doidinho...

shadows_by_alexkatana

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Abismos… *do alto da Torre da Esperança*

Dos desgastados parapeitos, ele observava. Lorde Addam Abria um sorriso canhestro, os olhos perdidos no horizonte, em direção ao abismo que abrira-se ao norte. Sua bainha vazia, ele podia acompanhar o brilho da própria lâmina às mãos do anjo que mergulhava por tantas vezes em meio às sombras que lá residiam. Lado a lado, Troll e nobre podiam sentir as vibrações, os tremores que cada golpe do ser alado fazia chegarem até as fundações do Palácio Elétrico.

***

Pela primeira vez em tanto tempo, suava. O anjo sentia seus músculos retesarem-se a cada golpe e o vibrar da lâmina percorrer a carne de seus agressores como se fossem de papel. A cada girar, o brilho da lâmina arrancando um novo grito. O rosto dele irreconhecível, enquanto urrava naquelas investidas.

O abismo, que proverbialmente olhava-o de volta, estremecia como se cada ser que sangrasse fosse parte dele. Não esperava tamanha força, àquele reino. Suas sombras houveram presenciado a luz daquele ser alado, antes, mas jamais haviam percebido o que se escondia por sob as penas brancas. Ele trazia a ameaça que sempre fôra sua, mas que por tanto tempo precisara manter escondida.

Não tinha a fúria incontida e temerária do Rei Troll, muito menos a sutileza sádica de Lorde Addam. Todo o tempo, estivera ali aquele anjo, mero observador, sem nome ou alcunha. E quando finalmente se desprendera do topo do pináculo elétrico, para defender os portões nucleares da fortaleza, abandonara mais uma máscara, para vestir outra.

E a cada golpe incontido, o príncipe do Vale das Lágrimas retomava toda a dor de que se lembraria. Trazendo dessa memória, seus mais sinceros sorrisos.

Celebra o Palácio, já que não importam as batalhas, quantas tenham sido ou quantas virão, o tempo que passou sempre inspira o que passará.

Moloch_by_EnferDeHell
Moloch, de ~EnferDeHell no deviantART.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Tempo além do tempo *sorriem espíritos*

- São dias, cara! Faz dias que sempre que eu finalmente consigo algum tempo pra sentar na frente do notebook e escrever, a cabeça simplesmente bloqueia e nada sai. Tem noção?
- Ã-hã… chato, né…?
- Muito! Muito chato. Sinceramente, pensei até em largar a porra toda e dar um tempo da escrita. Deixar as coisas às moscas… mas tbm não quero. Na verdade, eu sei lá o q eu quero, saca?
- Ã-hã… chato, né…?
- Muito! Muito chato. E o trabalho não tem me deixado tempo pra nada. Mas nada mesmo. Se eu parar pra pensar demais, tudo já era. Parece que nem tenho direito a respirar fundo, de novo.
- Saquei… chato, né…?
- Tá nem ouvindo, não é mesmo?
- Você se lamentando? Nem um pouco… chato, né…?
- Um pouco.
- Mas e de resto, como vai a vida?
- Ah, a vida vai bem. Super bem.

Só sendo levemente auto-biográfico-analítico-crítico….

terça-feira, 28 de abril de 2009

Enquanto isso, em Londres... *da janela*

- Londres, cara... - Ele observava tudo, enquanto dirigia manhã adentro. A manhã era fria, uma espessa neblina cobria tudo no entorno da baía de Guanabara e o carro voava baixo pela pista, margeando a pista do Aeroporto Tom Jobim como se quisesse correr contra os aviões que pousavam ou decolavam.

- Ãhn? - Sem tirar os olhos da tela do PSP, o carona mal ouvia.

- Londres... essa serração assim, de manhãzinha, parece Londres. - Chegava a soar maravilhado.

- A gente tá na serra, por acaso? Porque ou você errou o caminho ou isso não é SERRAção. - Mesmo assim não tirando os olhos do jogo portátil.

- Ah, serração, neblina, que seja! Mas me lembra Londres...

- Se você ignorar a favela da maré, as torres da refinaria queimando no fundo e o helicóptero da polícia militar trocando tiros com a bandidagem do Alemão, dois quilômetros atrás, realmente parece.

E assim seguiam, Ego e Eu-lírico, rumo a mais um longo dia de trabalho.



sexta-feira, 24 de abril de 2009

Vácuo *troveja o pináculo elétrico*



Breathe
Wake your lungs-
I'm falling fast, no air will come-
I think I've gone too far this time
I crashed the car-
I crossed the line-

Scream-
No one home-
No more Light-
No more me-

"The Body" [Irmãos Gutter]


Reerguer-se.
O impulso das cinzas, em criar forma e se refazer de súbito, abrindo asas para mais uma vez alcançar os céus.
Destruo-me, deixo a fachada dura e impávida descascar, desfaz-se o ego em pedaços pelo chão. Sou essas cinzas, pensando se vale a pena remontar, por um tempo, e mergulho nas lembranças do passado e possibilidades do futuro. Nesse labirinto de me esquivar dos "se eu tivesse" e "se eu tiver" da vida, procuro-me em vão, nos vãos, por vãos. Percorro os sulcos da alma como se deslizando pelas chagas do coração.
Nesse mergulho em mim, descobrir cada nova faceta da tola insegurança de ser incompleto. Temores de uma sede que só pode ser saciada em mim mesmo... para que erroneamente tanto buscara resposta no olhar e nas palavras além das minhas.



Mas sentir a resposta nascer do peito, do vibrar de certezas incertas, porém minhas. A pretensão de saber tudo destruída, para deixar nascer um novo olhar. Me desfiz, me desfaço e me desfarei, pra mais uma vez voar, antes que o chão desapareça de sob meus pés.
Não precisar de chão, não mergulhar no vazio, mas por vezes estender a mão.

Toda a decepção que (quando) restar será a da mão vazia, não a falta de ar.

sábado, 18 de abril de 2009

Rendição *coisas a 4 mãos – VII*

Por: Poisongirl e Troll

 

Existir numa inexistência, realmente, viver dos pequenos milagres, tirando leite de pedra. Quando você se convence enfim de que tudo que é real e importante é difícil, tolice maior de procurar a verdade em espelhos, em reflexos nos olhos alheios. Que fim tem o homem que aceita os grilhões do mundo e esquece de rir de si mesmo?

Curvar-se até o chão diante da inocência, ou mais além do pavimento duro, se fosse tão gasosa assim a matéria da alma que num ponto nunca definido arranca um grito ao ar quando atravessa os tais dos campos vastos, triscando balizas do tempo, lentamente, fingindo obedecer a relógios e, neste empuxo, despenhar-se junto aos dias e às promessas só pra aumentar o monturo e os escombros a seus pés.

Levantando-se enfim de olhos abertos, na certeza de que jamais os teria fechado realmente. Quando a alma vaza em lágrimas, sangue ou suor, se faz presente na liberdade fugidia. Resta somente buscar a certeza de si, não em outrem ou outrossim, mas nas próprias chagas, nas feridas que as pedras e os espinhos do caminho deixaram. E como é idiota, se crer menos ou menor pela vontade alheia ou mesmo pelo tempo! Ao alheio se sobrevive, ao tempo se perdura, tão somente. Mas não se cresce… não necessariamente.

Agora se ergue, cheio de incertezas menos estúpidas que as certezas do homem. As maiores chagas são as da inocência, essa que não se pode recuperar jamais. Os campos vastos repletos de corpos e os armários cheios de esqueletos.


End of the Innocence, de `Davenit no deviantART.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Página 182 *sobre a escrivaninha*

Impressionante… tanto que eu disse ao longo desses seis capítulos e agora, justamente tentando fechar o sexto, não consigo. A mente simplesmente não vai onde deveria. É curioso.

Folheando, percebo que já lá atrás as primeiras páginas foram escritas quase como se às pressas, borradas do grafite em traços grosseiros, quase carvão. Palavras prestes a descolar do papel. Acho que volto pra re-escrevê-las depois… mentira. Esse é um livro que eu nunca vou conseguir encadernar, mesmo. Partes a lápis e borrões de falta de borracha pra todo lado. Mas cada ação e escolha, ah essas sempre surgem à caneta.

A tinta é cruel. Todos fomos escritos e descritos, desenhados com ela. Não tem volta. Onde a linha saiu do caminho certo e errou defeitos a granel, a gente fica. Esconde ESSAS páginas, pra ver se ninguém lê. Até que os números – sempre eles! – entregam. E é aí que quem quer, acha. Cavuca nas entrelinhas e vai achando coisa nova pra ler. E quem nos lê demais, de vez em quando assusta.

Mas cá estou, na página 182 e tentando entender o que falta, desse livro novo. Na verdade, não o que falta, mas algo que eu deveria dizer e não acho. Como fecho o sexto capítulo? Bloqueio de escritor não descreve a sensação. A verdade é que nenhum dos outros cinco eu fechei. Tudo em aberto, tudo repleto de lacunas. Mocinho e donzela confundindo-se, personagens demais, uma narrativa que só faz ficar confusa, onde nem fiz questão de descrever tanto.

Simplesmente porque a vida não conhece linha, não conhece padrão ou trama… só porque eu escrevi tanto, em tão pouco papel – e 182 páginas são ínfimas, pra tudo isso. Quê fazer senão amontoar o que dá, dessa tosca autoria minha e tua, e costurar à mão essas páginas em qqr tipo de capa dura? É simples, na verdade… poderia largar tudo ao vento e ver o que ficava. Mas qualquer pedaço perdido, borrado ou indefinido, me faria toda a falta do mundo.

Então acho que essa página faz jus ao sexto capítulo. Da forma q palavra nenhuma jamais fez jus a um sentimento verdadeiro.

Ah, quer saber? Todo mundo gosta de histórias de beijo…

IMG111-01

E aqui, celebro muitas outras páginas vindouras...

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Custos *à ponta da caneta*

Em vidas, eu analiso
da sua produção
à sua satisfação.
E a felicidade, rateio.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Interlúdio *coisas a 4 mãos – VI*

Texto por Fábio e Troll.

 

Ele era um vassalo e nada mais. Conhecia todos os cantos do castelo e sabia exatamente onde podia se esconder para observá-la. Sabia que os olhos dela nunca fitariam os seus, pelo menos não com o olhar que ele tanto sonhava. Se acontecesse, seria para ordená-lo a trazer mais vinho ou qualquer outro acalento que pudesse vir da cozinha. Mas mesmo sabendo seu lugar, mesmo sabendo que o papel que lhe cabia naquele círculo era de um subordinado...

Ela era a princesa. Possuía tanto o título como o sentido figurativo da palavra. Era linda, seus cabelos cacheados eram encantadores. Seu sorriso, uma armadilha para corações desavisados. Uma beleza que poucos sabiam dar o devido valor e respeito, pois era apenas uma de suas diversas qualidades. Era sábia, íntegra, gentil e amável. Mesmo sabendo ser dura quando necessário.

Ele sabia de todas as minúcias do dia dela e, assim, onde deveria estar para vê-la. Apreciá-la. Imaginar todas as palavras que não lhe cabiam dizer, pois ela não se disporia a ouvir. Estava sempre às espreitas, fitando-a. O medo de ser pego e a sensação de observá-la davam a impressão que o coração não cabia no peito.

Ela levava uma vida vazia, sem emoções, numa mesma rotina angustiante. A falta de aventura, de desejo, de amor faziam-na definhar. Sentimento só piorado, quando devia demonstrar o melhor dos humores, tendo o peito remoído pelo vazio da mesmice.

Um dia, o Rei apresentou a ela o príncipe com quem se casaria. A união dos reinos era de serventia para propósitos políticos. E assim, nela, onde antes havia apenas a falta de emoção, se prostrou o peso de mil mundos. Era fácil saber que não era do interesse dela. O príncipe arrogante e prepotente tratava-a com um desprezo mascarado, por interesse apenas no título dela e nada mais. E isso era observado pelo vassalo que, com peito em pedaços e os olhos rasos d’água, decidiu dar fim àquele sofrimento.

Escreveu uma carta, deixando-a na cabeceira do sono da princesa:

Ó musa dos meus olhares
Singela e bela como uma pluma
Pudera eu te aliviar os pesares
E ter seu hálito como uma bruma

Amo-te em segredo
Impossível negar o quanto te desejo
Confessar-te me trás alívio e medo
De privar-me do quê vejo

Seria o seu príncipe se me permitisse
De um reino sem posses, nem riquezas
Seria a meu júbilo se consentisses
Em dar-me seus olhares e beleza

Sei que és infeliz
Sei que ages como uma atriz
Saiba que tomarei o que sempre quis
E que assim poderei ser feliz.

Não quero-te por esporte
Sei que tens um coração forte
Mas nego que esta dor me escorte
Pois sem ti prefiro a morte

Assim, daquela tinta que pulsara das veias à pena do humilde vassalo, surgia a luz que esperava trazer àquele rosto. De sorrisos que não os do bufão real, mas sim dos que luzem de um amor sincero, quase ingênuo. Ali, à beira da cama, repousaria a esperança de um tolo como a única que resta à donzela abandonada pelas fortunas. Agarrada às palavras, quase rabiscos, da escrita humilde de um camponês que jamais vira, realmente.

Lágrimas coroavam aqueles sentimentos, aquela dúbia alegria de gosto amargo, mas na noite prosseguia o baile de máscaras da realeza. A princesa trajava a tragédia, como uma caricatura teatral que tentava esconder-lhe toda a beleza. Ia de encontro ao seu príncipe, a comédia sorrindo falsa para todos aqueles ilustres convidados, enquanto o bobo-da-corte distraía o aclamado Rei, que às promessas e juras matrimoniais da filha trouxera a paz para os dois reinos. Bailavam todos, ao som do cravo e dos metais, como se celebrando a infelicidade dela.

Ali, entre tantas máscaras, a ingenuidade de um amor simples e plebeu escondia-se atrás dos pilares, caminhando furtivo pela multidão. Um semblante sério, dessa vez não procurando por ela. Vassalo daqueles muros do imenso castelo, ia e vinha onde fosse e quisesse. Por um momento, no entanto, foi impossível não vê-la. As lágrimas que escorriam de sob a máscara cortavam-lhe o peito e davam-lhe a certeza do que tinha a fazer.

E foi assim que o amor sincero, em um baile de rostos de papel-maché - cujos significados sequer conhecera, apunhalou a comédia em seu falso sorriso, com uma lâmina ingênua, da cozinha. O cessar do cravo anunciando novamente a guerra.


murder, de =onelovedivine no deviantART.

Seleção musical por Fábio: Metallica - To Live is to Die

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Sandices (e presente) do Rei *ao trono*

Para uma pausa na série a quatro mãos, a sempre afinada e tão bela Van pediu deste Rei elucidações sobre obsessões, apegos, manias e afins. Como há algum tempo não postava memes e esse parece um exercício divertido, vamos a eles.

1- No quesito bizarrices : Eu canto músicas que curto, de línguas que não entendo nem sei falar. Deve parecer meio mongol? É porque é algo totalmente retardado, mesmo.

2-No quesito " doido é o ...": Eu fantasio com minha própria vida, mas como um espião combatendo uma invasão alienígena secreta. Achei que quando saísse da adolescência não seria mais tão legal, mas ainda é.

3-No quesito TOC: OK, nesse ponto meu senso de ordem é seriamente afetado por coisas bagunçadas à minha volta. Do dinheiro que levo na carteira à bandejinha de sachês de condimentos na mesa do restaurante. Fico ajeitando tudo, o tempo todo.

4-No quesito " Freud explica...": Tenho problemas com o 5 e o 6. Sim, estou falando dos números, mesmo. São criadores de caso, virados pro lado errado, tenho certeza. Ah, e o rádio do carro fica sempre em volumes pares. É sério.

5-No quesito alimentício : Eu curto purê de batata com farofa. Pensem o que quiserem, é bom.

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Também não podia deixar de mencionar (e dar o destaque devido) um presente muito especial que o Palácio ganhou da sempre querida amiga Mai, que participou de um post a quatro mãos, aqui, já.

Fico muito honrado, caríssima. Obrigado.

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Em uma última nota, já está no ar a novíssima edição do Fanzine Elefante Bu. É a maior edição de toda a história do zine e realmente saiu arrasando. Dou destaque para o pessoal da música - que adorei a matéria com o Legião F.C. - e me diverti com a seleção de filmes de terror feita por Marcelo Mendes.
 
À Djenane, sempre esforçada editora dessa iniciativa, os grandes parabéns. O EleBu 41 está excelente.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Fôlego *coisas a 4 mãos – V*

Por: Bruxa e Troll

 

- Sério, por quê diabos você trouxe isso com você? - Ele olhava incrédulo, enquanto a mente fervilhava motivos plausíveis e absurdos.

- Por que eu quero. algum problema? - diz ela, olhar abusado, displicente, jogando a coisa sobre o sofá.

- Você e esses impulsos, né? Precisava de mais um? - Fingia não ligar praquele jeito dela, enquanto tirava o paletó e o jogava por cima da poltrona da sala. - Não quero nem saber quanto custou, tá bom?

- Que ótimo... - jogando-se no sofá, sem ao menos olhar para ele e dando a entender que estava pouco ligando para o que ele achava sobre as coisas e sobre o que ela fazia.

- Xapralá. Eu hein... - Ouvindo o celular dela tocar e fingindo não atentar ao fato, instintivamente procurando o próprio telefone, no bolso da calça.

Ela olha de rabo-de-olho para o gesto dele, mas decide atender o seu próprio celular. Entretanto, pára ao ver no identificador de quem se tratava e simplesmente ignora o chamado.

Olhava-a de soslaio, um pouco sério, e fazia uma constatação bem pouco relevante. - Deixei meu celular lá... esqueci.

- Você esquece coisas demais. - diz ela, em deboche.

- Que se dane, viu... - Nem via-lhe os olhos, agora, mas logo percebia a que ela se referia. - Ninguém vai me ligar, mesmo. E olha lá. Já vem você me lembrando disso de novo! Esqueci sim, tá bom? A cabeça tava cheia de coisa, mas você vai implicar sempre.

- Vou! - levantando-se, irritada - Vou! Vou! Aquilo não era coisa para se esquecer! Nunca!! Entendeu? Nunca! - e saiu da sala batendo o pé.

Ia atrás dela, ouvindo aqueles passos firmes e tentando respirar fundo, pra não perder a paciência. - Olha só, eu não vou pedir desculpas por isso de novo, tá? Quer me ver de joelhos aqui, agora?

De repente, na cabeça dela, viu a cena dele ajoelhado a seus pés. Tudo absurdamente patético. Ou quase... Porque por um momento até desejou isso. E riu o seu sorriso da paz, escancarado, doce.

Olhando-a, cruzava os braços ao perceber aquele sorriso, como se já se defendendo daquela bandeira branca, suspirando exasperado. - Que foi?

Ela voltou até ele, descruzou os seus braços e os fez enlaçarem-na. - Aposto como voce não me faz perder o fôlego. - diz ela, provocativa, olhando-o nos olhos, ainda com o sorriso.

Ele olhava no fundo daqueles olhos escuros e por um momento pensava em mil impropérios, como boa resposta. Sentia seus braços ao redor dela, uma vez mais, e a cálida provocação daqueles lábios tão próximos por um momento despertava-o. - Aceito, vai... - Pousava-lhe aquele misto de beijo e mordida ao ombro, sentindo a pele exposta da blusa de alças deixando a própria respiração lamber-lhe a pele. - Mas se eu ganhar, vai me contar quanto custou.

- Nem mor-ta... - disse ela, num sussurro ao seu ouvido, rindo.


couple, de ~emrekunt no deviantART.

terça-feira, 31 de março de 2009

Valsas *coisas a 4 mãos - IV*

Por: Sisa e Troll

 

Enfim, vocês adentraram o Palácio Elétrico. Aqui, no imenso salão, onde mesmo as sombras temem a luz. Aqui, o incorpóreo mundo astral se torna mais uma vez carne. Aqui, vocês confrontarão seu passado. Um grande baile de máscaras. Os convidados do Palácio, tantos e tão grandes ou pequenos, deslizando pela pedra fria, rodopiando ao som da valsa no cravo. Teclas são tudo de que o Rei consegue arrancar melodia.

Depois de horas ao seu lado, cada vez mais encantada, cada vez mais conformada que nada ia rolar, você me pegou pela mão praquela dança. E depois da dança, segurou meu rosto e me deu um beijo maravilhoso. E aquele abraço. A dança, o beijo e o abraço falaram mais que todas as palavras do mundo, mas mesmo assim eu ouvi as palavras: “Quis fazer isto o dia todo”. Sim, as palavras vinham, mas só pra reafirmar o que seu corpo já dizia.

Aquele vulto em pleno giro, valsava com toda a beleza do amor novo e a ingenuidade dos corações vigorosos. Não havia dúvidas no fundo daqueles olhares, um fixo ao outro, e os sorrisos por si só iluminavam o salão. Mesmo sombras, os dois se faziam presentes como um vulto de luz pálida e agradável. Antes da dor vir rasgar chagas, como eventualmente farão em qualquer amor que arde intenso.

Suas palavras têm pra mim um significado especial, porque existem pessoas que falam, se expressam, vivem através de palavras e não sabem como agir quando têm a pessoa ali, ao alcance das mãos. Aí fico lembrando desse seu jeito de quem fala pouco, mas sabe o que quer, e sabe agir. E de repente mais uma vez nossa história passou como num filme na minha cabeça, “repetindo, repetindo, repetindo, como num disco riscado”.

E a valsa no som seco do cravo, tornando-se cada vez mais forte, como se as mãos do músico pudessem se inspirar na dança, e não o contrário. Quando por um momento nada mais percorria o salão senão aqueles quatro pés, detrás dos imensos espelhos. O vento percorrendo todo o Palácio, os silvos do ar entrando pelos vitrais rachados. Um sorriso canhestro à face do Monarca, que observa sua convidada, vendo tudo que dança por trás do vidro espelhado.

E quando seus braços me envolveram, eu senti o calor do seu corpo, e já sabendo o que você queria (não por ser isto que tantos homens querem, mas por sentir isto, envolvida no calor do seu abraço), pensei em que resposta daria quando as palavras viessem. E quando vieram, eu respondi “Se for só dormir, pode”.

Vultos. Memórias. Tudo o que já fizemos e fomos nos trouxe até aqui. E quão belo não seria só rever os pedaços certos!

sábado, 28 de março de 2009

Roda das estações *coisas a 4 mãos - III*

Por: Tyr e Troll

 

Não era fácil aquele momento, quando conversávamos sobre o que escolher ou não. Antes parecia fácil, ou talvez enxergássemos pela mesma faceta, mas água e vinho não se tornam um mesmo líqüido, pois um é rubro e outro translúcido, mas do que estávamos falando realmente?

Água e vinho... era estranho pensar naquela mistura rósea um tanto amorfa, quando as duas coisas meio que se perdiam em algo que provavelmente não teria gosto algum. E de novo não chegamos ao que estávamos falando. Assuntos que acho que se perderam com o tempo, talvez. Era uma escolha, possivelmente importante. No fundo, você não escolhe o que ter ou viver, mas sim o outro mundo de coisas que deixa pra trás. Vivemos de opções não marcadas.

Talvez fosse isso que realmente incomodava de vez em quando. Saber que para trás havia ficado algumas coisas que se julgava tão importante e que agora mais parecia um saudosismo de rever um albúm antigo. Várias vidas novas surgiam a cada novo passo à medida que o passado era deixado para trás, ganhando novas nuances que deixariam muitos, confusos ao ver aquele albúm, ou a garrafa de Vinho e água postos sobre a mesa. Mantidos separados por serem elementos diferentes, mas com traços tão marcantes quanto os assuntos que não voltavam ao ponto da conversa iniciada.

O passado descortinava-se ali, naquele entremeio de uma tensão palpável, e pensar nas fotos não ajudaria em nada. Mesmo assim, por vezes é preciso folheá-las. Sentir-se idiota ou saudoso por cada máscara que já tenha usado, na frente de lentes momentâneas, mecânicas ou não. Cada trecho emprestando uma lantejoula, uma miçanga para o carnaval de cores e miséria que gostamos de contar que sempre foi a vida. Esconder a simplicidade atrás de tantos poréns e porquês. Esconder a alegria atrás da garrafa de vinho, já pela metade. Tirar a dor da cabeça e jogar na água.

Mas dores de cabeça só são descartadas quando eliminadas com um simples remédio, ou quando abandonamos aquilo que tanto incomoda os pensamentos, e o simples abandonar lembraria o arrancar do coração e dos sentimentos. Seria deixar para trás as lembranças que nos fizeram sorrir, ou as risadas e abraços que deixaram suas marcas. As máscaras se encontravam sobre a mesa de antigos carnavais, onde as cores perguntavam o lugar que deveriam se encontrar. Um sorriso fraco; um suspiro e a máscara é colocada mais uma vez. Ali não havia sorrisos, nem tampouco lágrimas. O que ele ali encontraria era o semblante frio da promessa de vindouras épocas de uma nova entre-safra.

E se já é o outono da vida... quando se chega a ele e as folhas caem. Quando nos campos da memória a colheita está pronta e farta, mas nos jardins da mesma não há as cores primaveris. Sem entre-safras, sem mais dúvidas, mas também sem a esperança do virar da roda. Não. Mentira. A roda sempre girará, na entropia de Ouroboros que no ato de devorar-se sufoca Yggdrasil. Só o homem conseguiu ser estúpido o suficiente para realmente devorar o próprio rabo e achar que se reformaria, disso. As colheitas já correram círculos pelos campos, sem devassar a terra. A máscara sorri de volta, com aqueles olhos de abismo. O semblante que ela já escondera, frio como granito. Está ali, de volta, fora da roda das estações. Finalmente toma a taça do vinho em mãos. Deixa o rubro forte tomar-lhe os lábios e toma a máscara mais colorida e bela, como um estandarte contra o resto. Com toda a tolice do pícaro que veste sonhos.

- O mundo não pára nem espera.

- Apenas aguarda para depois continuar seus passos.

Não haviam xeque-mates e tão pouco becos sem saída. Máscara mais bela e olhos de abismo, ali se despedem para novamente se encontrarem, para quem sabe um dia voltarem a filosofar.

 Celtic Autumn Leaves, de ~foxvox no deviantART.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Elixir de palavras *coisas a 4 mãos - II*

Publicado originalmente aqui.
Por: Mai e Troll

Os dias são assim, não há sol mas eu canto porque mesmo sob guarda-chuvas, há luz nesse dia. Se em instantes o mundo desaba e o céu cai no chão e sob nossos pés só percebemos abismos, logo ali reencontraremos a paz, no simples beijo, abraço, afago ou no deitar as palavras sobre a cama de papel...Somos assim, peças soltas em nossos próprios quebra-cabeças. Pingentes no mundo, facilmente transformamos um bem-querer em dose extra de uma espécie de elixir mágico em nossas vidas... Doses homeopáticas de um amor alternativo, secreto e recíproco, com o qual se espera poder contar, sempre... Essas são as tais pontes. São pontes, as fontes literárias em que palavras içam-nos, resgatando-nos de abismos, nossos ímpetos silêncios, quase morte em quase vida... E são momentos, fragmentos de tempo, pequenos gestos, singelos fractais e não fossem esses pequenos momentos, pequenas coisas que encontrássemos o significado de ir sendo, que faríamos, que seria do viver? ‘O grandioso é por si. Isso precede sua semiologia. Mas o que há para se extrair de belo e agradável é o pequeno, o cultivado, algo simples com a delicadeza de um beijo. Sim, somos peças soltas em quebras-cabeças nossos, como dos outros, também. Mas Somos maiores nos gestos mais singelos de cada dia do nosso existir. E desse elixir secreto e alternativo, vem o dia nublado ganhar brilho. Não há um sol, mas há luz e eu canto'...

sexta-feira, 20 de março de 2009

Física e química *coisas a 4 mãos - I*

Por: Poisongirl e Troll

Entregar-se ao momento, descobrir a própria alma nos gestos refletidos no outro. Um encontro inesperado, as propostas indecorosas da vida e o clímax de um acaso-não-ao-acaso. Quando as coincidências se confundem com a intenção futura e a vontade pregressa. Momentos fazendo química de substâncias nada elementares, quando palavras se tornam vapor exalado de misturas.

Tornar-se o próprio veneno, exposto à corrosão do que lhe vai por dentro, lastro ácido e atroz  que lhe atravessa os vasos e se oferece ao ar, cercando seu corpo como um pensamento, ou o desenhar de um gesto, ou um cheiro que não se reconhece  mas que a ninguém aturde como a si mesmo, nem que se quebrassem todos os pratos, todas as janelas e arrebentasse as portas antes de sair, como se fosse possível sair deste vagar pelo seu circo particular de horrores, nem mesmo assim desmancharia o espanto.

Ainda que conseguisse deixar o labirinto, não livrar-se-ia das escolhas, dos tantos caminhos que se descortinam. Nem derrubadas todas as paredes, libertar-se-ia de tudo, na inexorável queda do fruto de Newton. No pecado da gravidade, despencando até você. O entorpecer dos sentidos, mergulhar no abismo de suas sombras. Passado e presente quebrando os ossos como se desafiando mente e corpo a serem ainda sólidos. A peçonha por sob a pele, pulsando para anunciar o tempo.

E na seqüência tomaria mais um gole disso que é você e depois outro e mais um e ainda outro e outro antes do fim.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Tabuleiro *geme o homem da camisa de força*

Ele caminhava cada vez mais lentamente. A trilha era a mesma, não menos íngreme, mas também não mais, e no entanto a marcha ia diminuindo aos poucos. Parecia que seus olhos não conseguiam mais ver a estrada tão claramente e sentia-se perdendo peças pelo caminho. Por vezes abaixando-se para pegar algumas que via caírem. Desmontava, pq sentia-se fora de ordem.

- Homem, não pense que deixamos esse jogo parar, assim. – O cavalo olhava-o com um tom sério, do alto de um quadrado negro, à beira de seu trajeto. O tom tão claramente acusatório, vindo daquele ser esculpido em marfim. – Vamos! O tabuleiro está parado há tempo demais.

O caminhar não cessava, mas por um momento aqueles olhos deixavam-se contemplar o panorama por trás do mesmo brilho de sempre. Um ar vago ao rosto, como se nenhuma jogada pudesse ser realmente infalível, mas mesmo assim o olhar entregava que havia aquele planejamento em ordem. Algumas peças caídas do chão voltavam para seu corpo, como se pensar no jogo fosse aos poucos remontando o quebra-cabeças.

- Avante! – O cavalo sobressaltava-se como se tomado por uma ordem inaudível e saltava de seu quadrado, galopando ladeira abaixo até uma nova posição, onde voltava a ser marfim duro.

- Sacrifica-me em nome de algo, jogador? – Poucos passos acima, o bispo olhava-o com um ar de resignação. – Olho à volta e sem o cavalo, sei que serei o próximo a cair. Mas já tantas vezes era eu a ensinar sobre o sacrifício. Justiça poética lhe cai bem, como sempre. – Respirava fundo, vendo a imensa torre que se avolumava à sua posição e fazendo o sinal da cruz, uma última vez, antes de deixar de existir sob o peso da pedra .

Os gritos de mais uma entidade ecoavam pelo tabuleiro da vida, enquanto o jogador abaixava-se para alcançar as últimas peças que havia perdido. Não se incomodava em desmontar-se, de vez em quando, mas ultimamente sentia mais forte o vácuo por baixo do próprio quebra-cabeça. Não lhe agradaria o ébano da inexistência. Não agora. Encaixava de volta aquele pedaço, à palma da mão esquerda, e respirava fundo uma vez mais, depois de tanto tempo. Ainda estava longe do cume, mas pela primeira vez em dias, parava de caminhar por alguns instantes.

O olhar percorria a disposição de todo o tabuleiro, uma vez mais, antes de voltar-se para o espelho. Quem o desafiava, ali, era ele mesmo. Seu oponente mais difícil… e mais recorrente. Fechava os olhos por alguns instantes, a respiração se tornando mais uma vez controlada. Recomeçava sua caminhada e dava as costas para seu adversário.

Sorria, ao ver a rainha passar imponente, como se voar fosse a coisa mais simples do mundo. Seus lábios enfim moviam-se e a palavra ecoava imponente por aquele mundo de pretos e brancos.

- Xeque.

sábado, 14 de março de 2009

... não me toquem nessa dor. *no rádio*

Um estrondo. Surdo por alguns segundos, ele olhava em volta. O cheiro de ozônio, tão forte no local, preenchendo-lhe as narinas. Algo parecido com uma dor de cabeça atacando-o de súbito. Aquilo tinha sido um raio... só podia ser.

- Coincidência, só isso.

Mal ouvia a própria voz, mas não perderia a pôse. Forçava-se a não cambalear, apesar do forte impacto que acabara de sentir. A visão voltava aos poucos e só então se dava conta: não era o mesmo lugar. Não fazia idéia de onde estava. O estrondo não era mais coincidência, porque não podia ser.

- Quem é voce?

O rapaz à sua frente apenas abria um sorriso largo, branco, por baixo dos cabelos um tanto bagunçados e soltos. A franja um tanto mais comprida do que o normal lhe cobria os olhos, mas um brilho verde por sob ela denunciava-lhes a cor. A roupa era estranha... a manta dava um jeito esquisito, anacrônico, às calças jeans e ao tênis surrado. Não respondia nada... como se havia identificado, mesmo? Oner... não... Oneiromante.

- O q-quê diabos é você?

Aquele sorriso trazia caninos finos, não longos, mas pontudos. Incomuns. Não era nada saído de um conto vampiresco... lembrava-lhe mais algo... felino. A voz vinha, mesmo que os lábios não se movessem.

- Não, não... o diabo aqui é você.
- De que porra você tá falando? Pra onde você me trouxe?
- Eu não... ela. Ela não te quer mais por aqui.
- QUERO OUVIR ISSO DELA!
- Aqui... ela é quem ouve tudo. Você só escuta. Você é um câncer.

O Oneiromante erguia uma mão, tirando os cabelos do caminho. Os olhos pareciam mudar de cor, a cada segundo, e por um momento tudo parava, o próprio ar estagnava ali dentro. O rapaz se dava conta de para onde havia sido trazido: ali era a casa dele. Mas diferente, de alguma forma.

- Não... não vou embora. - A voz mudava, aos poucos. Palavras tornando-se algo mais parecido com ruídos. Ele grunhia, à luz dos olhos daquele que viera confrontá-lo. – Quem você pensa que é? – Aquilo vinha em um berro quase ensurdecedor.

- Quem você pensa que é?

Ouvir aquela pergunta de volta o irritava além do suportável e ele sentia-se mudando, de alguma forma. Era estranho, mas era ao mesmo tempo natural. Crescia, em desafio àquele homem que queria arrancá-lo dali. Estava em um sonho, mas não era um sonho seu. Era um sonho dela. E ali, ele se sentia muito mais confortável do que em qualquer outro lugar. Haviam sido anos habitando aquela mente. Não se deixaria derrotar, por um idiota pretensioso.

De súbito, decidira pelo embate. Saltava por sobre o oneiromante, querendo derrubá-lo, para descobrir-se, menos de um segundo depois, em um novo lugar. Parecia que estava sobre algum tipo de pedestal, e ao fundo podia ouvir a voz daquele que tanto o atormentara… e a voz dela.

- É como um vício… buscar o que te faz mal.
- Haverá sempre alguém…
- … que seja.

Tudo desmoronava rápido demais. Ele não entendia mais nada, mas sentia uma sensação de impotência imensa… que sequer sabia se era sua.

O acordar não foi como o de qualquer manhã.


Bleeding Love, de *xequemate, no deviantART.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Ópios, édens, analgésicos... *no rádio*

É manhã e o dia me recebe de céu aberto.
Não braços nem toques, só o calor do sol.
A persiana falha em manter fora o dia claro.
E assim, chiando e grunhindo, eu acordo.

Tudo começa, lá fora o mundo vai e corre.
O banho vem súbito, grita pra mim: acorde!
A água me agride o torpor, tão confortável.
O tempo segue em seu inexorável "foda-se".

A pessoa no espelho me culpa nas olheiras.
Respiro fundo, aturo minhas perspectivas.
Sobreviver ao dia, pra viver melhor depois.
Um dia paro, deixo a estrada pras veredas.

Sonhei coisas simples e pueris, essa noite.

 

domingo, 8 de março de 2009

Incidências *à fogueira das paixões*

Os cabelos claros, um tanto compridos, teimavam a favor do vento pela janela do ônibus, num ritmo quase tão frenético quanto o da música aos fones de ouvido. A mochila sobre o colo pesada de todos aqueles livros de faculdade, o pesado caderno e as quinquilharias quasiessenciais da vida moderna: carregador de celular, palmtop, um joguinho portátil para as eventuais filas chatas. O que ele não sabia, mas que mais tarde iria irritá-lo profundamente, é que nada daquele peso todo tinha a forma ou função de uma caneta. Mas ali, ainda não importava.

Ela subira apenas quatro pontos depois dele, mas outros dois se passariam antes que alguma pancada do ônibus - típica de IPVAs mal gastos - o fizesse passar os olhos pelas outras pessoas na condução. E ali, quase sete paradas depois, vislumbrou pela primeira vez aqueles belos cachinhos quase ruivos, profusos, desafiando a gravidade e balançando não com o vento, mas com os movimentos do próprio ônibus. Contou as cadeiras para saber q estava a apenas três passos de saciar sua imensa e súbita curiosidade.

Não se pôs a imaginar demais, mas tentou adivinhar melhor que cor seria aquela. Quando viravam para a direita, eles dois e todos os presentes, a luz do sol fazia-a parecer loira. Para a esquerda, ficava mais pra ruiva. Era como olhar para aqueles brindes de pacote de salgadinhos, imagens mudando de cor. Mas ele jamais havia fantasiado com brindes e eles certamente não teriam aqueles cachinhos para se agarrar e deslizar os dedos.

Quando desistiu da disputa entre as tonalidades, começou a desenhar outros aspectos, descobrir feições. Sardas? Certamente teria, mas não muitas. Apenas salpicada de pontos interessantes para beijar - sob a desculpa de contá-los - pelo rosto, ombros, braços, seios. Não era muito alta, a calça de algum uniforme, um laranja discreto com um verde-musgo, e as sandálias de saltos curtos. O que via de seus braços era uma pele bem branca, delicada. Fácil de arrepiar, talvez.

Pela silhueta, era magra mas sem exageros, uma medida agradável. Quando se ajeitava ao banco para começar a ler algo, ele percebia - imaginava, mais do que via - o decote de algum volume, firme. Mas mesmo na diagonal em que a via, nada transparecia do rosto. Os cachos faziam bem seu trabalho de esconder o suficiente para atiçar-lhe a imaginação fértil. E ali, a cabeça bolava mil e uma maneiras de se aproximar ainda dentro do ônibus, todas um tanto cretinas e algumas delas bem ridículas.

O coração perdeu uma batida para o vento, quando um ponto antes do seu ela levantou-se e puxou a corda. Ele precisaria imaginar um tanto mais e com mais afinco, para dar a ela aquele rosto. Sua mente não lhe fizera qualquer justiça e por isso ele se sentiu um pouco culpado. De frente a luz definitivamente a deixava loira. Não se havia demorado a pensar nos olhos e enquanto ela passava, ele se agradecia por isso. Não conseguiria bolar aquela cor de mel tão clara e reluzente.

Passava. Não havia mais desculpas que o apoiassem na vontade de continuar olhando. Mas ao olhar pela janela, sorriu largo e quase tolo. Ali, a um ponto de suas aulas, uma lanchonete estampava as mesmas cores do uniforme.

E assim, e pelo resto daquela manhã, ela mal imaginava que tantos pontos de ônibus, alguns lanches demorados,  "coincidências", flores e um bocado de ladainha depois, alguém se deitaria beijando-a... com o pretexto de contar-lhe as sardas.


adult little red riding hood, de *janaschi no deviantART.

segunda-feira, 2 de março de 2009

... and learn to fly.

"A verdade é que eu nunca me conheci, realmente. Porque a pessoa que já teve tanta certeza de tudo não é a mesma que hoje segue pela vida ao seu lado, que ama dessa forma tão incondicional e se entrega sem perguntas. Sem ficar se deixando frear por tolos receios ou pelos grilhões do tempo. Quando a mente nubla e tudo fica relativo a parâmetros que eu nem sabia q estavam lá. Só sei, isso sim, que te amar é novo como todo amor tem que ser. Mas que quem te ama não sou eu, como me conheci por anos. Esse sentimento é desse 'eu' de hoje, de amanhã e de sempre."

A carta estava um tanto borrada da tinta e a mancha ao canto do papel era o sangue dele, ela tinha certeza. Não lhe contara nada sobre aquela guerra, sobre as novas batalhas, mas nem precisava. A sacerdotisa fechava os dedos, amassando um pouco o papel, e suspirava, levantando-se e caminhando lentamente em direção à varanda. O vento soprava e os finos fios vermelhos balançavam ao seu sabor. Ela respirava fundo, observando o céu. Sabendo o que tinha de fazer.

Longe dali, um estandarte ainda flamulava contra o mesmo soprar, tão manchado de terra, sangue e lágrimas. Ele erguia-se uma vez mais em riste, corpo rígido como a lâmina na outra mão, os nós dos dedos já brancos de segurarem a empunhadura e a haste daquela bandeira. Ao seu redor, o som de tanto metal ainda tilintando. A batalha prosseguira assim já por horas e os estrondos dos tambores já haviam sido silenciados pelas flechas. O guerreiro precisava manter o brasão de pé. Mostrar a seus inimigos que ele e os seus não desistiriam jamais.

O vento aumentava, com jeito de presságio, e apenas seus dedos moviam-se, enquanto a respiração deixava-se alterar aos poucos. Ela sentia o ar com aquele jeito elétrico, confirmando sua missão. O cheiro da terra preenchia-lhe as narinas antes mesmo que a primeira gota caísse. Em menos de dois minutos, o outono desabava gotas pesadas até onde sua vista alcançava. Os céus escorriam pela terra, criando sulcos e encontrando caminhos. Por alguns instantes, parava de respirar. Concentrava-se em lavar o mundo.

Cada novo grito era como se a batalha começasse toda novamente e terminasse no instante seguinte. Ele podia sentir o sangue fluir pela lâmina como se pela própria pele, antes dele realmente fazê-lo. A arma uma extensão de seu corpo indo buscar a vida de cada opositor, dentro de seus corpos. Mal sentia qualquer dor, agora. Apenas se entregava àquela batalha e aos próprios urros e grunhidos. A bandeira começava a molhar-se de mais do que sangue.

Antes do fim daquelas duas batalhas, vinham já as torrentes lavar o mundo do sangue derramado.

 

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Take these broken wings...

- Shhhhhhhh...

Ali não havia mais ninguém. À beira do lago, repousavam somente aqueles dois corpos e assim permaneceriam noite adentro. O silêncio à volta quebrado pelo eventual borbulhar das águas, quando o espelho vinha tentar mostrar a ela tudo o que lhe atormentaria. O rosto tão belo escondido entre os braços do amante, que apenas a acolhia em toques e murmúrios.

Estava acostumado ao caos, a dançar pelos acontecimentos como se não pudessem tocá-lo fundo demais. Ele, que sempre deixara-se ler as trilhas do destino, ver as finas linhas do tear do mundo e estar pronto para cada novo turbilhão. Nunca fôra o tecelão. Não imaginava a sensação de ver aquela trama ir contra sua vontade, pois jamais tivera a pretensão de fazer mais do que talvez puxar um ou outro fio, com jeito de criança testando limites.

- Muita coisa mudando... - Aquela voz tão gostosa o trazia de volta dos devaneios e seus dedos voltavam a acariciar os cabelos macios da amada, sentindo-os deslizarem, fugidios, tão finos. Não havia dor àquela voz e isso em parte o incomodava. Sabia lidar com a dor alheia, muito bem. Sabia curar as chagas da decepção, fechar as feridas de mágoas e do abandono. O que sentia ali era novo. Tinha jeito de orgulho ferido, mas era tão maior.

- Shhhhhhhh... - que palavras ele podia buscar? Era inútil fingir que entendia, então apenas deixava-se acolhê-la. O calor de seu corpo, naquele abraço que se fazia casulo, tentando conter o imensurável. Os grandes braços azuis descobrindo-se horizonte, por alguns minutos que fosse. O espelho d'água borbulhando uma vez mais. A ordem plácida quebrando ondas de um caos não tão familiar. Porque sim, ele conhecia a desordem. - É tão importante assim?

Por um momento, esperava que aquela pergunta lhe rendesse um olhar tão penetrante que faria sua alma sangrar, mas para surpresa dele, ela apenas continuava fitando o infinito. Aqueles dedos tão firmes, movendo-se como se pudessem desfazer a tapeçaria do infinito, para começar de novo. Ela não respondia, mas nem precisava. Aqueles gestos demonstravam que ela não se renderia.

Tão tenaz. Ele se deixava admirá-la. Envolvia-a com seus braços e suas asas, demoradamente, fazendo-se casulo. Até que ela, tão grande novamente, surgisse por entre as penas, com jeito de borboleta experimentando o ar, dona das próprias vontades e do mundo. Não demoraria, claro.


.... Today i'm sad, de ~machine9 no deviantART.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Espelho felino... *no altar de Bast*

Meu gato está gordo. Juro.

O animal me olha de volta e dá aquele miado fraco de quem debocha da minha constatação, mas era impossível não ver. No verão o pêlo cai, a casa toda vira um caos de tufos brancos e meus ternos pretos me condenam por isso. Mas mesmo sem toda a pelagem, ele continua fofo demais. Deve estar gordo, só pode. Do fundo daqueles olhos de um azul tão forte, ainda me questiona com um não tão sonoro "e daí?".

Academia... será que acho uma academia pro gato? Ele devia malhar, tá precisando um pouco, tem uma escada inteira pra subir entre o terraço e o primeiro andar do apê. Vai que tem um troço no meio do caminho e capota. Mas ele anda sem tempo pra ficar malhando, tá acordando muito cedo. Vai ver se mudar de ração, ou de repente se eu arrumar pra ele mais atividades. O tempo tá curto, mas acho que sempre dá pra encaixar mais uma coisinha.

A agenda do bicho anda cheia. Fato. Não sei o quê tanto faz, mas ultimamente só o vejo correndo de um lado pro outro e, quando chego em casa tarde da noite, estamos os dois muito cansados e caímos na cama, um acolhendo o outro. Claro, primeiro ele mia, para clamar pelo toque. Fica esparramado, faz cara de desinteressado só pra fingir que não faz tanta questão assim, e então chia pra mostrar que o carinho é um direito adquirido do bicho de estimação e não um dever do dono.

O gato certamente anda fazendo das suas com as gatas dessa vida, nem que seja só o eventual flerte felino. Ele simplesmente não consegue, mesmo com as que lhe distribuem as eventuais patadas. Acho q até curte uma unhadas que toma, aqui e ali. Uma vez ouvi a frase q "sem um pouco de dor, não vale a pena". Inspiradora. Ele me olha como quem concorda.

O bichano já deve saber até quanto tempo eu levo pra desmaiar de sono. Aposto q ri de mim nas noites q tiro só o sapato pra uma "deitadinha rápida" e acabo dormindo de roupa, com a cama ainda feita. Por trás daqueles olhos imensos, debaixo das orelhas pontudas, guarda lembranças de quando nós dois não corríamos tanto assim, pra cuidar de tudo a tempo.

Mas uma coisa está dada... mesmo tão ativo, meu gato tá gordo. A veterinária vai me dar esporro, semana que vem quando vier vacinar. E só nesse ponto eu e ele divergimos. Já é o segundo cinto q perco, largo demais, em 4 meses. E o gato nem pode ficar com as minhas roupas.

*momento "EGO on"*

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Bom dia *refletindo-se no espelho*

Era manhã clara de dia ensolarado, aquele céu azul que nem filmes conseguem te mostrar, por mais que tentem. Nenhuma nuvem, só aquele jeitão de frio com calor do sol. Um dia fresco, bom e curioso. Porquê curioso? E isso interessa, à nossa história? Não, não, quem dita aqui sou eu, narrador. Você senta e lê ou troca de página, mas essas palavras são minhas. Só por mera convenção, que você é influência, pequena que seja, sobre o que estou digitando, então dá licença? Seu único poder é o controle remoto, mas esse texto ainda estará aqui, quando você mudar de canal.

Enfim...

O terno combinava com o carro, que combinava com a mochila, que combinava com as pupilas dos olhos. A gravata combinava com a íris, que se compunha bem com a camisa e dava um aspecto geral muito bom. Só não combinavam a avançada calvície com a idade nem o ar sério de toda a roupa com a pauleira desenfreada no carro, mas tudo bem. Para as pessoas nos carros ao redor, isso era um problema passageiro. Para ele, catarse. Pretendera estar em seu destino às 8h. já eram 8h25 e estava ainda a seis quadras do lugar. O rádio tentava consolá-lo: "O trânsito está ruim pela cidade toda, a Comlurb tem dois caminhões tombados em grandes vias, impedindo a passagem." Era o consolo de ver que aquilo era um problema de todos... é verdade que miséria quer compania, afinal, mas ele não fazia questão de saber que o inferno não se resumia só àquela rua.

Ainda assim, era o céu de um dia agradável e isso o acalmava quase tanto quanto os berros junto à voz do vocalista, nas caixas de som do carro. Atender o telefone não lhe faria muito bem, então simplesmente ignorava as duas primeiras ligações. A terceira, no entanto, soava importante e ele alcançava enfim o bolso interno. "Dois funcionários faltando e um avisou que chega atrasado." Claro, isso no dia que ele não estava lá. E porque não? "Um no telefone, três na recepção e boa sorte. Mudem os turnos de almoço e pelamordedeus jogo de cintura, por aí." A voz do outro lado não soava muito reconfortada, mas compreendia a situação e tentava acalmá-lo. Pra sorte dela, ele já estava calmo.

"Tudo dando errado, né?" A voz vinha de dentro do carro e ele apenas sorria, pensando no tom daquela pergunta e qual seria o melhor para uma resposta. Não precisava nem falar, de tão alto que a certeza ecoava em sua mente. Não, não era tudo dando errado. Eram os imprevistos contornáveis, de um dia que vinha cobrar alguma atenção, para que ele não se dispersasse demais na beleza daquele céu. Eram as coisas tomando rumos novos, mas tão certeiros quanto a mente dele se deixava ser, nas soluções que vinha tentando encontrar desde que acordara. Era nisso que ele era bom. Era isso que ele faria. No linguajar tipicamente "bullshit" administrativo, o tinham como um provedor de soluções.

Passaria daquele dia, sabia que ele terminaria tão bem, de alguma forma, que todos aqueles problemas pareceriam ridículos, ínfimos. As vantagens de todo o caos do trânsito surgiam na forma de vagas para escolher. Uma à sombra, por exemplo, tão perto de seu destino que acomodava o carro com aquele jeito certo. Os clientes ainda não haviam chegado, presos no mesmo trânsito de que acabara de sair. Acomodava-se e decidira aproveitar o tempo.

Abrindo o laptop, decidiu que escreveria uma crônica sobre um ótimo começo de um dia promissor.

Bom dia, leitor ou leitora.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Findar II *do diário do Andarilho*

A madrugada seguia por mim, enquanto a chuva caía torrencial e van alguma queria levar-me para a Central do Brasil. Deveria ter me preparado melhor, mas havia bem pouco que poderia fazer agora. E pelo jeito q todos os motoristas chegavam anunciando que não pretendiam voltar, o caminho de volta ao Rio deveria estar bem ruim, com tanta água. Sobre a plataforma, já éramos o suficiente para lotar duas viagens e mesmo assim nenhuma van de volta. Até, claro, a mais ferrada de todas surgir do nada, desembarcando uma lotação naquela rodoviária de interior e anunciando que voltaria.

Seguiria até o destino final, então sentei-me ao fundo, em um canto. Ao meu lado, um pastor evangélico negro trazia sua bíblia e me cumprimentava, antes de pegar o celular para avisar a alguém q finalmente havia conseguido condução de volta à capital. Em meio à conversa, um dado curioso: "Fui comprar os sapatos e vieram me chamando de pastor, daquele jeito, sabe? Quase perguntei se me preferiam de volta nas drogas e no crime." Ao nosso lado, sentou-se um senhor fedendo a álcool que não sabia indicar onde precisava saltar. Todos demorando a se acomodar, bem mais gente do que deveria caber, ali. Mas fomos.

Em meio à jornada, o pastor lia Pedro: Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo; Se é que já provastes que o Senhor é benigno. A página terminava aí, junto com meu interesse, e fui dar conta de passar meu próprio tempo longe das palavras dos primogênitos e da igreja do Filho. Livrinho de Sudoku em mãos, estava entretido.

Central do Brasil. A van mais lerda da história me deixara lá depois de 00h40 e encontrei o ponto do 184 vazio. O pastor havia seguido qualquer outro caminho. Quando cheguei à plataforma do meu ônibus, já havia um outro rapaz, 30 e poucos anos, talvez, e ficamos aguardando. 3 carros vieram e os 3 avisaram q já dirigiam-se à garagem. 01h25 o homem pergunta-me:

- Quer rachar um táxi até o ponto final, em Laranjeiras?
- Como sabe que vou pro ponto final?
- E porquê não saberia? Mas a 3 quadras daqui passam o 497 e o 498, tbm. - Eu sabia, mas não costumava caminhar até lá. Era em si um lugar bem ermo. No entanto, fomos.

Em meio à espera, dois homens vieram ao ponto. Um deles, mais baixo, enfurecido. O outro um homem mais alto, forte, carregando uma cesta básica. O primeiro relatava de como lhe haviam roubado a mochila. "Não tinha nada de valor lá! Eu não tenho nada de valor! Só minhas roupas do trabalho, meus documentos, cara. Meus instrumentos. O q me define!" O homem que estava comigo começou a sorrir e me olhou de soslaio, antes de conversar com o revoltoso.

- Levaram mesmo? Mas na mão grande assim? - "Assim, cara. Porra, hoje quem me olha torto eu pego."
- Os justos pagarão pelos pecadores. - "Issaê! É bíblico, né? Mas é isso mermo! Quero porrar alguém hoje. Os justos pagarão pelos pecadores! Minha mochila, cara, porra!"

O homem ao meu lado instigava-o a falar cada vez mais. O rapaz gritava. Quando veio o 498, sentou-se, furioso, ficava dando socos na cadeira. Dizia q queria pegar um. E repetia o tempo todo "Os justos, cara... alguém vai pagar por esse pecador filho da puta que levou minha mochila." O ônibus estava mais sujo q a calçada. Terra virara lama, latinhas de cerveja vazias, duas, rolando pelo chão. Várias pessoas lá dentro, o homem incomodado e incomodando, o grandalhão sentado atrás dele e eu e o rapaz da Central que me levara até ali sentados no fundo. Até que ele se pronunciou deixando que apenas eu ouvisse.

- Tá vendo? Isso é bíblico. - E começou a rir.

Começou a conversar comigo sobre o quão insanas se tornam as madrugadas. Que mundo é esse, de ataques a esmo, porque todos supostamente somos filhos de Deus. E um filho honesto, trabalhador, sendo roubado de tudo o q tem. Uma mochila. Roubaram-lhe tudo o que tinha, que ele carregava às costas. Me fez a pergunta:

- Quanta gente já perdeu igual, suas mochilas? - Foi quando meus olhos se abriram para as sombras em volta e percebi com quem eu falava. Toda a violência que se construía naquela cena, todas as palavras e até onde aquele homem me levara. Observei-o sorrir, quando o incômodo do passageiro se tornou demais e o trocador foi ter com ele. O ônibus parou, a briga havia estancado, as pessoas tentando separar. O assaltado berrava.

Pude ver aquele homem perdendo asas... Não as dele, mas aquela raiva era a de um caído. Ele provocava-se com a mágoa de um anjo abandonado. Ao meu lado, outro sorria:

- A madrugada de um trabalhador. Revoltado, incontido. - Quando separaram tudo e o ônibus recomeçou a andar, o trocador olhou para nós, lá no fundo, os únicos que não esboçavam reação, em meio à confusão. A gravata rasgada e uma cruz pendendo do pescoço.

Os dois saltamos perto do ponto final do 184 e caminhamos. Ele me falava, como talvez falasse há eras atrás:

- Aquele cara tá certo, sabe? Tem horas que violência só se pode revidar. Violência gera violência, então pra quê ficar parado quando te provocam?
- Existem momentos, talvez...
- Quer momento melhor que às duas da madruga?
- Tem horas que parece que o demônio vem mostrar seu exército, orgulhoso.
- Do jeito q tá fácil pra ele, estranho seria se não fizesse.

Ao alcançarmos a esquina de minha rua, falou-me:

- Valeu, cara, boa noite - Virou-se em um caminho totalmente oposto, voltando a descer as Laranjeiras. Só respondi:

- Boa noite, Rei das Moscas.

E Beelzebuth sorriu, antes de ir-se.


Beelzebuth, de =Drochfuil no deviantART.