Bem-vindos à nova dimensão... seqüenciador de sonhos online.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

haikai XIII *numa manchete velha de jornal*

todos vivendo
império da impunidade
mata-me já

segunda-feira, 21 de abril de 2008

KUARAY

Prólogo: Amanda...

 

Nada... acordar sempre tem essa horrorosa sensação do vazio. Do lado de fora, só o escuro da noite. De que adianta a janela, quando pelo jeito ela está quebrada? Debaixo da coberta, pelo menos, eu posso fingir que nada disso é real. Mas não posso ficar ali. Os bipes do alarme não me deixarão. O painel piscando, azulado, bem na minha cara, só vai voltar em mais cinco minutos, se eu não levantar. O jeito é sacudir a cabeça, espantar as teias e areias do sono e deixar que o frio gélido do chão aos meus pés me acorde de vez.

Dor de cabeça... na capa da última revista que consegui começar a ler, dizia que todo mundo tem. Culpavam os remédios que tomamos para dormir. Então não posso reclamar, não é mesmo? A outra opção é virar um zumbi, nunca descansar. Prefiro a dor de cabeça. Ainda que em certas manhãs pareça que pode ser mais confortável atravessar um lápis de orelha a orelha. Essa é uma daquelas manhãs. O pé toca o chão, enfim. O gelo me abraça até os ossos e só então dá pra levantar.

O quarto está quente, úmido... incômodo. Preciso consertar o condicionador de ar. Fazem dias, aliás. Ah, que seja! Melhor assim que um dia não acordar, porque se está congelado. O corredor é estreito, no caminho até o café da manhã, e as luzes demoram a acender. Preciso consertá-las, também. Ela já está lá. Aquela menina. É estranha, muito pálida, os cabelos loiros e bem desgrenhados, do tipo que pelo visto a briga com a escova não valeria a pena. Os olhos de um azul fraco, esquisito. Me olha, já, com aquele suspirar profundo de aborrecimento e falava.

- As luzes do corredor est-

- Eu tenho que consertar, eu sei. Você já falou isso ontem. E provavelmente vai falar amanhã, também.

Ainda sonolento, eu sei que a voz soa grosseira e por isso a menina cala a boca. Esse olhar dela... tudo é novo demais, pra guria, não dá pra culpá-la por se incomodar com qualquer coisa fora do lugar. Eu cambaleio até poder olhar lá fora... parece que milhares de estrelas cadentes passam pelo céu. Esfrego os olhos, enfim indo me sentar.

Ela já serviu minha aveia com leite. Reclama sempre que quer mel, mas não dessa vez. Depois da primeira patada, sabe ficar quietinha. E aí quem se incomoda sou eu. De estar aqui, comendo, com ela me fitando em silêncio. O vazio sempre é o pior disso tudo. Eu suportaria essa dor de cabeça o tempo que fosse, se lá de fora viesse algum som, qualquer coisa que entrasse pela janela, mas de verdade.

- Só mais dois dias, pra você ver o seu pai. Aí vai poder dormir e comer como quer. Até lá, a gente se agüenta.

A minha risada acaba saindo amarga. Sem qualquer naturalidade. Não adianta sequer falar do pai, com ela. Parece que ela não liga. Tem cara de o quê, 14 anos? Por aí... essa fase da rebeldia. Mas bem piorada, depois de tudo que ela já passou. Deve sentir saudade de tanta coisa. Eu acho que nunca conheci isso, ao menos não desse jeito. Só uma pessoa, realmente... e essa possivelmente passa os dias sonhando mil maneiras de me ver morto. Engraçado, isso. Quando você já viu até mais de mil maneiras de se morrer. Talvez não engraçado... palavra errada. Mas não gosto de pensar em "trágico", também. Então deixo a coisa indefinida.

- Ele não é o meu pai...

Ela quebra o silêncio dos meus pensamentos e me faz suspirar, de novo. Esse jeito como fala, é sempre assim. Que droga...

- Quem mais você tem? Porque eu que não sou seu pai mesmo. Ele pelo menos tem os papéis pra provar. - tô dando outra patada, eu sei disso. - Você sabe que eu só estou-

- Fazendo o seu trabalho, eu sei!

A menina grita aquilo, batendo na mesa e deixando a colher de plástico escorregar até o chão. A tigela de aveia e leite derramando um bocado. Se levanta, saindo a passos apressados, em direção ao quarto. Ela e seus cabelos desgrenhados. O nome é Amanda, e tem horas que eu acho que ela nunca queria ter saído do coma. Faz quatro meses que está comigo, mas pelo visto é uma eternidade, pra ela. Fica me perguntando o tempo todo sobre o tempo que perdeu, todos os acontecimentos, coisas que eu nem sei responder. E vive chiando que eu não tenho uma enciclopédia ou coisa assim, nem mesmo no computador. Alienado... certamente, eu devo ser um alienado. Se você for pensar bem nessa palavra. Conheço pouca coisa que me definiria melhor.

Tudo arrumado, eu presto atenção no silêncio. Quando se sabe ouvir direito, nunca é apenas silêncio. O zumbido de algo funcionando, da eletricidade correndo. Me disseram que já há muito tempo nós homens não conhecemos mais o silêncio. Tem quem fale que jamais conhecemos, falando de uma pesquisa bem antiga, em que teriam descoberto que a própria Terra emite zumbidos subsônicos dissonantes. Então só deve existir silêncio no frio do espaço, mesmo. E na morte. Melhor nem pensar nisso. No quanto essas duas coisas combinam. Ao menos assim, o zumbido que eu ouço é o de um silêncio não tão desconfortável.

Subo as escadas, com algum esforço. Até sentir que não há mais esforço algum. Perco meu peso, ao alcançar os últimos degraus, e sorrio, enfim, alcançando o eixo. Sentindo tudo girar à minha volta, por alguns segundos. A breve desorientação. Respiro fundo, me apoiando e me puxando pelo caminho até a cabine. A escotilha demora na checagem da pressão interna. Eu preciso consertar isso, também. O abrir traz o chiado de um vácuo momentâneo, me deixando entrar. As telas em seus sinais e avisos azulados e verdes, e eu me prendo à cadeira, para fazer minhas checagens matinais. Do lado de fora da Kuaray, um céu negro de estrelas cadentes, que tentam nos seguir, em vão, concordando com os mostradores: estamos em pleno Salto. Ficaremos assim por pelo menos mais cinco dias, até chegarmos a Europa.

Os únicos sinais alaranjados estão em sistemas de suporte de vida: as janelas dos quartos, algumas escotilhas, o sistema de aclimatização. Amanda não reclama sem razão. Quer que pelo menos as janelas mostrem alguma paisagem diferente, pra variar. Mesmo sendo apenas um holograma. Só isso já impede uma pessoa de enlouquecer de vez, no espaço. Eu deveria consertar pelo menos a do quarto dela. Me solto da cadeira e saio flutuando da cabine, em direção às ferramentas.

Ao pé das escadas, lá está Amanda, de novo. Observa a tela do sistema geral de comunicação da nave.

- O que significa Amanajé?

- "Mensageiro". É de alguma língua bem antiga, todas as naves da Bras e a maioria das estações do sistema solar usam esse programa. É bem melhor que o antigo Hermes.

- Bras... que jeito estranho de pensar em um país. Tudo virando empresa, desse jeito.

- Minha avó falava de países e comentava essa transição. Dizia que isso aconteceu quando as pessoas perderam o referencial de seu território. Quando todos os povos precisaram deixar a Terra. Ela estudava essas coisas de história.

A menina desliza os dedos pela tela, com seu jeito curioso que às vezes, admito, é divertido de ver. Não é de todo má, está apenas confusa. Deve ser difícil, dormir tanto tempo, acordar séculos depois, dentro de um microondas. Mas cada vez que dá nela de me contar do mundo em que vivia, quem se perde sou eu.

- Acará é aquela outra nave, né? A que ia saltar logo atrás de nós?

- Ã-hã.

- Por quê você não quer ler a mensagem dela?

Amanda sabe ser intrometida.

- Por que me basta UMA de vocês mulheres, pra questionar tudo o que faço. Agora dá licença.

Deixo-a sozinha no corredor e saio bufando, até o quarto dela, já escolhendo as ferramentas. Foi a terceira patada em menos de duas horas. A menina está prestes a me fazer quebrar um recorde.

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Algo BEM diferente, admito. Mas tenho o sonho de publicar um livro de ficção científica e espero críticas sinceras e construtivas, de quem por acaso tiver chegado tão longe em sua leitura. *rs*

Glossário: Kuaray - eclipse solar, do Guarani; Amanajé - mensageiro, do Tupi; Acará - garça, ave branca, do Tupi.

Abraços do Troll.

domingo, 20 de abril de 2008

haikai XII *grita a bruxa à fogueira*

seus sacerdotes
o que eles querem de ti
cega obediência

Opression_by_terriblyvague

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Eu, desperto *à voz de uma sombra*

Naquela tarde chovia. Cara, mas chovia muito mesmo. Sabe aquelas coisas de você sair na rua por dez segundos e voltar empapado? Pois é, bem desse tipo. Mas eu não tava na chuva, pra te falar a verdade. Não vai dar pra esquecer nem um segundo, mesmo depois de muito tempo. Algumas coisas te mudam, é normal, todo mundo conhece traumas e aprendizados. Você apanha pra crescer, sai com a cara sangrando e a alma também. Mas se parar pra pensar vai ver que a primeira cicatriza e a segunda caleja. Nada, entretanto, me mudou como aquela tarde. Tô sangrando aquilo até hoje.

Ela tava lá, ou nada teria começado. Ela tava lá porque precisava estar, na verdade. Não que ela não quisesse, bem longe disso... mas a vontade minha ou dela não vinha ao caso, saca?  Aqueles olhos de um castanho incomum e intenso, que dependendo da luz pareciam até vermelhos. A guria me rodeava, devagar, quando finalmente tinha me convencido a fazer aquilo. Eu de joelhos, no chão, respirava fundo, ganhando coragem pro que ela dizia que eu tinha que fazer. O quarto ainda tinha cheiro de sexo, dos lençóis úmidos e da pele minha e dela. Nós dois nus, naquela luz fraca que escapava pelas frestas das cortinas fechadas. Meu corpo arrepiava cada vez que ela chegava mais perto, a pele dizia que eu tinha que fazer alguma coisa, ali. No fundo, eu sabia. Mas tinha medo daquela decisão, sabe? Quando alguém te revela certas coisas, você resiste em aceitar fácil.

“Não vai doer?” Eu não tava com medo de dor nenhuma, ao menos parte de mim sabia que ela tava certa. Mas acho que naquela hora eu procurava qualquer desculpa pra atrasar um pouco mais aquilo. Mas o sorriso dela me dava tanta certeza. Passava uma segurança que eu só tinha conhecido em certos momentos da vida, fazia eu crer em tudo aquilo e era tão bom. Sendo bem sincero, ela fazia o tipo que seria capaz de condenar um homem às suas maiores burradas e atos mais impensados, só com um relance dos olhos avermelhados. E por mais que eu percebesse isso, eu tava ali ajoelhado, esperando a coragem crescer, respirando cada vez mais fundo. Ela respondia, com uma voz tão macia quanto aquela língua.

Aquela voz me confortava: “Não dói. É só um calafrio. Mas é gostoso...” Então eu só podia respirar ainda mais fundo. Ela realmente sabia de algo e eu não. Porra, tinha aquela certeza na voz que eu não questionava, saca? E só podia ser aquilo, mesmo. Tudo que ela tinha me perguntado tava certo. O peso que eu sentia, o jeito como eu via as coisas, sei lá. Mas o que me convenceu foi a voz. Quando ela falou daquilo, sabe, muita coisa fez sentido. Enfim eu tinha decidido, não é? “Vai... faz logo....... eu te amo.”

Ela dançava. Do jeito que me rodeava, era uma dança. E eu amava o jeito como aqueles quadris sensuais e nus sabiam rebolar, ao meu redor. Era gostoso vê-la, e ponto final. Simples assim, eu não conseguia controlar. Não é o tipo de coisa q a cabeça se esforça demais em descrever, só te diz que é. Aqueles dedos delicados e finos, a forma como tocavam minhas costas em carícias tão gentis, como se pudesse desenhá-las. Eu sentia, mais do que nunca, aquele peso logo atrás dos ombros. Às omoplatas... ele sempre estava lá, mas não daquele jeito. Era como se aumentasse, ao toque dela. Uma pressão tão estranha, como se algo sob a pele reagisse. E reagia.

“Elas estão aqui... esperando...” Aquela voz de novo, me causando arrepios em meio ao toque. Ela falava bem baixo, perto do ouvido, com certo tom de admiração, deixando o hálito quente deslizar pela minha orelha, tão provocante. E eu sabia do que ela falava. Ali, eu já entendia bem mais, só por conta dos toques. Ela tava certa. Correntes... grilhões... não havia metal, mas havia sim algo que me prendia, todos esses anos. Algo que eu tinha abandonado. Eu forçava os olhos, ao senti-la fechando os dedos sobre a pele, esperando a dor daquelas unhas que eu adorava quando me arranhavam, mas não a esse ponto.

Os arrepios não paravam... a garganta travada... os olhos não se abriam... sombras. Cada sombra daquele lugar parecia vir me abraçar, tão fria. Eu tremia. Nada doía, mesmo com aquelas unhas rasgando-me a pele. Era mesmo calafrios, algo paralisante, eu podia sentir os dentes trincando. Puta, cara, eu achei que tava morrendo, sei lá. Fiquei xingando aquela mulher de tudo quanto era nome, quando sentia o meu sangue quente melando as costas. Por um momento, parecia tudo tão doente que, putaquepariu, eu achei que já era, que tava doido. Mas foi só aí que notei melhor as sombras que me seguravam. Eram frias como o metal das correntes que eu não podia ver. Eu tinha desistido de mandar ela parar. Não conseguia falar nada... o ar faltava. Eu nem fazia idéia de quanto tempo eu já tava sem respirar, no meio de tudo aquilo. Não conseguia.

Sabe quando você tá com tanta sede, mas tanta sede, que quando bebe um gole d’água gelada dá pra sentir direitinho o caminho frio que ela faz passando pela garganta, até o estômago? Agora imagina essa sede toda e te jogam dentro de uma piscina, de boca aberta. A sensação simplesmente te toma. Por dentro e por fora... não tem nada igual, cara, te garanto. Porra, o peso das costas mudou de um jeito bizarro. Ali, eu sentia meus ombros me puxando pra cima. Ouvia aquela voz, mas agora tão fraca: “Eu te amo.” A coisa abriu de um jeito tão violento que a guria caiu para trás. Eu sentia o vento nelas... eu percebia o que era tê-las como parte mim. E eu respirei tão fundo que parecia que eu nunca tinha respirado, antes. Eu ofegava em um desespero que desconhecia. Eu queria mais... foi uma sensação que misturava fome, sede, tesão, susto, gozo... E tudo voltava ao mesmo tempo. Quem e o quê eu era. E os motivos. A Guerra, o Caos. O medo.

Eu ainda sentia o sangue escorrendo pelas costas e o cheiro de ferro. Eu finalmente encontrava equilíbrio, no jeito como elas se moviam. Não é tão difícil quanto pode parecer. Quando uma coisa esteve errada por tanto tempo assim, é fácil perceber como ela tem que ser, quando se acerta. E eu percebi. Aquelas asas enormes, finalmente livres da minha carne mortal, estendidas até tocarem o teto, esticadas e tocando cada lado do quarto de motel. Eu respirava fundo como se saído do êxtase. Era aquele torpor de depois do gozo. Era perfeito. O sangue que ainda não parava de escorrer pelas minhas costas, melando os calcanhares. O mundo fazia sentido, ainda que de uma forma estranha.

Aquele abraço, os braços dela passando por baixo dos meus, me envolvendo aos poucos, me mostrando que o frio das sombras agora era apenas o meu corpo. Os dedos tão delicados... ela estava tão gostosa que eu recostava contra o calor da pele dela. Sentia seus seios roçarem à base das minhas asas e adorava a sensação. Elas estavam sensíveis ao menor movimento. As penas dela, negras, envolvendo os dois, protegendo a gente de tudo. Ali no meio o mundo era só nosso. O sussurro bem baixo, ao meu ouvido: “Bem-vindo de volta... Estrela da Manhã.”

Pode parecer algo escroto, mas eu chorava. As lágrimas vinham, com a intensidade de tudo aquilo, e não dava pra controlar. As memórias também... algumas tão confusas, outras como se tivessem sido ontem, mas de uma porrada de tempo atrás. Chorava toda a dor de tudo que havia esquecido. Os gritos e gemidos que então me rodeavam, vindos do nada, a agonia de eras, que não me assustava. Chorava a felicidade de ter acordado. Chorava tudo o que ainda veria, como se pudesse lavar a alma por antecipação. E sorria escondido pra ela, os lábios longe da luz: “Não foi só um calafrio...”

Lucifer[1]